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Mariana Vasconcelos

I Love Aveiro

Parte à descoberta

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História é identidade

A identidade de um local não se resume a estradas, prédios ou pontes. A identidade é criada pelo coletivo de histórias únicas que se entrecruzam para tecer uma herança cultural vibrante. Numa cidade com um crescente fluxo turístico e envelhecimento da população torna-se necessário eternizar estas histórias, valorizando o património humano. Assim surge o “I Love Aveiro”.

O “I Love Aveiro” reúne uma colectânea de histórias que encapsulam a essência da nossa região, seja através das pessoas, dos lugares ou dos acontecimentos que a moldam. Este projeto, em contínuo crescimento, é constituído por várias edições, cada uma representando uma compilação distinta de narrativas. Iniciámos esta jornada em 2018, literalmente à nossa porta, com o “Bairro da Beira-Mar”, um compêndio de tradições, figuras históricas e locais emblemáticos de um dos bairros mais icónicos de Aveiro. Em 2019, criámos o “Stories for Solidarity” e partilhámos as histórias de migrantes que escolheram Aveiro como sua nova casa. Mais tarde em 2020, lançámos o “Heróis de Aveiro” como forma de prestar homenagem aos corajosos homens e mulheres que, mesmo não usando uma capa, salvam vidas. Em 2021, com o “Mapa Solidário de Aveiro”, colocámos no mapa as instituições, associações e outras entidades que incansavelmente se dedicam ao bem-estar da comunidade aveirense. Mais recentemente, em 2024, com o “Voice of the Masters” demos voz aos mais velhos, muitas vezes esquecidos pela nossa sociedade.

Estas histórias não são meras referências a pontos turísticos que qualquer visitante em busca de ovos moles acaba por encontrar. São incríveis narrativas sobre pessoas cativantes, locais memoráveis e acontecimentos únicos.

Escadaria “I Love Aveiro” – onde tudo começou

Não só os Aveirenses, como também aqueles que visitam a “cidade dos canais”, conhecem a escadaria mais famosa de Aveiro. Estas escadas, ao lado do canal principal da Ria de Aveiro e a poucos minutos a pé do centro da cidade, enviam uma mensagem com a qual todos concordamos: “Eu Adoro Aveiro”.

Esta escadaria, feita de calçada portuguesa, foi intervencionada pela primeira vez na primavera de 2013 pela Agora Aveiro através do projeto internacional “Art and Trust”. Este projeto, implementado para oferecer oportunidades de expressão aos mais jovens, foi criado em colaboração com os especialistas em graffiti da SublimeVilla, um conhecido estúdio de tatuagens. Um processo semelhante aconteceu simultaneamente na Sicília, em Itália, onde uma outra organização parceira fez as suas próprias acções de arte de rua com o seu grupo de jovens.

De repente, as escadas, outrora cinzentas, tornaram-se num dos locais mais famosos da cidade, sendo hoje um dos símbolos de Aveiro.

Bairro da Beira-Mar

O “I Love Aveiro” presta homenagem ao mais típico bairro da cidade dos canais, o “Bairro da Beira-Mar”. Neste característico ponto de Aveiro, onde os habitantes são chamados de “cagaréus”, escondem-se inúmeras histórias que nos aventuramos a desvendar. Histórias de um bairro que se ergueu das antigas muralhas de Aveiro, histórias que se enredam por entre as capelas de São Gonçalinho e São Bartolomeu, histórias que nasceram das célebres rivalidades entre “cagaréus” e “ceboleiros”. Para dar a conhecer a todos as histórias deste tão icónico bairro da nossa cidade, nasce o “I Love Aveiro – Bairro da Beira-Mar”.

Stories for Solidarity

O “Stories for Solidarity” nasceu porque amamos a nossa cidade. Porque queremos uma sociedade mais compassiva, onde as pessoas não desviam o olhar da luta. Queremos que as pessoas reflitam, mas que também tenham iniciativa. Que apoiem os imigrantes e as iniciativas de inclusão social, em vez de ignorar. É um desafio mudar as atitudes das pessoas ao nosso redor e, embora não dependa exclusivamente de nós, podemos ajudar a uma mudança de mentalidades. A mostrar que “eles” não são assim tão diferentes de “nós”. Entrevistámos 11 imigrantes que se mostraram abertos a contar-nos a sua jornada - de como é vir de um país diferente e estabelecer-se em Aveiro. Talvez depois de ouvirem estas histórias como nós as ouvimos, percebam que não somos assim tão diferentes.

O “I Love Aveiro – Stories for Solidarity” foi financiado pelo programa Corpo Europeu de Solidariedade da Comissão Europeia, pelo Município de Aveiro e pelo Instituto Português do Desporto e Juventude I.P..

Heróis de Aveiro

Com o “Heróis de Aveiro” prestamos homenagem aos homens e mulheres que, embora não usando uma capa, salvam vidas! Bombeiros, médicos, polícias, enfermeiros, professores, vizinhos e amigos. Pessoas que dedicam o seu tempo e capacidades a melhorar a nossa cidade. Pessoas que não se veem como “heróis”, mas que o são para a comunidade. Reconhecemos assim o trabalho destes profissionais e, ao mesmo tempo, mostramos como cada um de nós pode ser um herói.

O “I Love Aveiro – Heroes of Aveiro” foi financiado pelo programa Corpo Europeu de Solidariedade da Comissão Europeia, pelo Município de Aveiro e pelo Instituto Português do Desporto e Juventude I.P..

Mapa Solidário de Aveiro

Através do nosso trabalho na comunidade temos percebido que são muitas as instituições, sociais e não só, que têm dificuldade em dar a conhecer aquilo que fazem. Com o “Mapa Solidário de Aveiro” procuramos dar visibilidade a diferentes instituições da região - culturais, sociais e ambientais - promovendo a solidariedade e o voluntariado por entre a comunidade local. Com este projeto abrimos as portas destas entidades a quem delas precisa mas, também, a voluntários que queiram ajudar e empresas que desejem apoiar a sua missão.

O “I Love Aveiro – Solidarity Map of Aveiro” foi financiado pelo programa Corpo Europeu de Solidariedade da Comissão Europeia.

Voice of the Masters

O “Voice of the Masters” é um tributo às vozes dos avós, os mestres da vida. Entrevistámos doze idosos para que nos contassem as suas experiências, falassem das suas vidas e dos conselhos que têm para dar. Demos voz às vozes que nem sempre são ouvidas para que todos as possam ler e reler. Para que possamos relembrar que todas as vidas são uma história à espera de ser contada.

O “Voice of the Masters” foi financiado pelo programa Corpo Europeu de Solidariedade da Comissão Europeia, pelo Município de Aveiro e pelo Instituto Português do Desporto e Juventude I.P..

Um mapa repleto de histórias

Este mapa interativo permite-te conhecer as histórias que fazem Aveiro. Seleciona a edição do “I Love Aveiro” que pretendes explorar e clica num ponto do mapa para leres a respetiva história.

Beira-Mar

O início é fictício, mas traçado pelo mar.

Seguia a ria o seu caminho, e por Aveiro decidiu ficar.

Criou, sem separar, populações com sede de mar. Nasce, a Norte do canal principal da Ria de Aveiro, o bairro da Beira-Mar na freguesia de Vera Cruz. Brota, a Sul do canal, a freguesia de Glória. Duas populações e uma rivalidade que em nada revolta e em tudo apazigua. Uma, a Norte, navega na eternidade do mar misturado com o Sol e dedica o seu dia ao sal e à ria. Estes são os Cagaréus. Outra, a Sul, semeia o campo e as hortas, vai ao mercado às cebolas e anda pelas portas. Estes são os Ceboleiros. Cagaréus, como serão lembrados, eram marnotos, pescadores ou moliceiros acompanhados pelas suas embarcações, uma delas a bateira. O curioso nome de cagaréus provém da ré do barco, utilizada, no aperto do momento, para as necessidades dos ocupantes.

O passado do bairro é pintado azulejo a azulejo pelos habitantes que nele cresceram e a ele permanecem fiéis. Contrasta com o presente através de lembranças, em cores de festival, a despertar uma altura em que os mais novos aprendiam a nadar na ria que um dia viriam a explorar. Roupas estendidas decoravam as ruas onde o familiar é tradição e o estranho, aparição. Casas soalheiras, eternas em comparação, tinham as chaves na porta como um convite extenso, até para os Santos do seu coração. E não eram poucos, os Santos da região. Mereciam calendários de festas em sua adoração. Pedidos de proteções, promessas e convicções. São Gonçalinho tem o seu nome celebrado desde 1875, em festas que se prolongam por um fim-de-semana alargado, o mais próximo de 10 de janeiro. S. Bartolomeu, quando libertado da sua capela a 24 de agosto, deambula livremente pelas ruas de Beira-Mar, fazendo passar o vento que em Aveiro não podia faltar.

Como seria de esperar e de maneira nenhuma culpar, tal zona ficou reputada para visitar. O presente tem tudo por contar, tudo por desvendar. Talvez a sede de mar em nada irá mudar e a este bairro emblemático os Homens estão destinados a parar.

Cagaréus e Ceboleiros

Atualmente separados por um canal, na antiguidade por uma muralha. Cagaréus e Ceboleiros. Não se sabe ao certo quanto tempo temos de recuar para chegar à origem de tais designações, mas o motivo... esse, é amplamente conhecido.

Cagaréus, nascidos na antiga freguesia da Vera Cruz, a norte do canal principal da ria, no Bairro da Beira-mar. Intimamente ligados ao mar e à burguesia. O seu nome provém da junção das palavras “Cagar à ré”, isto porque, em altura de aperto fisiológico, era na ré da embarcação que advinha o alívio. Embarcações havia 3, cada uma com a sua função. O mercantel, um barco de transporte, tanto de passageiros como de carga, é muitas vezes confundido, por quem não é da terra, com o moliceiro, ex-libris da ria. Distinguem-se pelo tamanho e pela forma da proa. O primeiro, maior em tamanho, com uma proa pouco curvada que acaba em bico; já o segundo com proa e popa altas e curvadas. No moliceiro, o mais puro na atividade a que se destina - apanhar o moliço, são característicos os painéis decorativos exuberantes e, por vezes, brejeiros. As bateiras, com várias funções, desde a pesca de berbigão, ao transporte do pescado, pessoas e pastos, são embraiadas a preto. Dependendo da sua profissão, que é como quem diz, do barco onde navegavam, poderiam ter diferentes designações. Moliceiro, como o barco a si atribuído, era aquele que se ocupava da recolha do moliço ou junco. Pescador, tal como o nome indica, ocupa-se das pescas. Marnotos, atualmente em menor abundância, são os responsáveis pela recolha do sal, podendo usar o mercantel para o seu transporte.

Aos Ceboleiros estava entregue o campo, na zona mais nobre da vila. Junto ao antigo templo de S. Miguel, onde hoje se encontra a Praça da República, era realizado o Mercado de Cebolas, local onde os agricultores realizavam as suas trocas comerciais.

A rivalidade marca a sua história. Namorar com alguém do outro lado da ponte era motivo de zaragata. E em altura de festa, comparações eram inevitáveis. Na época em que só havia um andor para as duas margens, a procissão fazia-se em dias diferentes. Diz-se que houve um ano, por altura da Procissão do Senhor dos Passos, que uma das freguesias se recusou a entregar o andor. O resultado de tal rivalidade, acentuada pelo sucedido, foi uma violenta discussão que ficou marcada na memória dos habitantes.

Com o passar dos tempos e a junção das freguesias, a rivalidade atenuou. Mas aveirense verdadeiro, ou é cagaréu ou ceboleiro.

Capela de São Bartolomeu

Quando a história não é bem conhecida, a imaginação faz o resto. Se aos receios e incertezas se aliar a criatividade para dissipar o nevoeiro e encontrar explicações que nos confortem, surgirão tradições, devoções ou histórias peculiares, neste caso, atrás de uma discreta capela.

A singela capela de S. Bartolomeu, perdida nas ruelas do bairro da beira-mar, ao que parece, dá resposta a várias questões que assaltam tanto quem está de passagem como quem fica em Aveiro. Se sempre procurou a quem se queixar de não ser possível abrir guarda-chuvas nesta cidade ou do vento lhe oferecer um penteado que não pediu, está a ler a história certa. Modesta por fora, vestida de branco mas não totalmente despida de cor, a ténue sugestão de azul na cúpula hemisférica, a planta circular - é assim que quem deambula junto ao canal de S. Roque a conhece.

Por cima da porta retangular, está inscrito o nome de quem a mandou edificar em 1568, André Dias Caldeira, sobre o qual também existe nevoeiro. Não sendo a mais antiga nem popular capela de Aveiro, é das que se mantêm menos alteradas. Não há consenso sobre as suas origens, embora algumas fontes a coloquem no período em que D. Manuel obrigou à conversão os judeus e estes continuaram as orações em segredo.

É altura de entrar dentro da modesta capela. Aliás, seria altura de entrar na capela, mas a porta está fechada. A capela de S. Bartolomeu só abre as suas portas uma vez por ano. Para os irresistivelmente curiosos aqui fica a descrição do seu recheio contrastante com a modéstia do exterior: no interior, esconde-se um altar habitado por três santos. Estes apresentam-se, não muito convencionalmente, vestidos de cores garridas, o que não era muito comum nem apreciado na arte sacra. Contudo, em Aveiro já vamos estando habituados a este festival de cores, a estes santos vistos como desculpa para fazer a festa. De entre os santos-festivaleiros representados, encontra-se S. João Batista, ligado aos ciclos de trabalho dos marnotos e de preparação das salinas, N. Senhora do Ó e, finalmente, S. Bartolomeu. Este é um santo peculiar. Diz-se que sobre ele não muito se sabia e, mais uma vez, onde não se sabe muito a imaginação faz o resto. Segundo se diz, S. Bartolomeu era discreto mas fazia questão de dizer o que pensava. Encontramo-lo representado com uma adaga, pois diz a lenda que morreu esfolado vivo como um mártir. A sua voz era também ela peculiar. S. Bartolomeu tinha uma voz adjetivada de estranha e era dotado ainda, notem, da capacidade de “cooperar com o outro lado”.

É altura então de abrir a capela. Diz-se que o "moço", o diabo, é libertado no dia 24 de Agosto, dia de S. Bartolomeu, e deambula livremente pelo bairro da Beira-mar. Ora, isto deve-se à capacidade que apenas S. Bartolomeu tem de o dominar e de, neste dia, conceder a sua libertação para evitar que este se revolte por estar amarrado a seus pés todo o ano.

Os poderes de S. Bartolomeu não acabam por aqui. Para as almas distraídas e cabeças voadoras que perderam algo, não têm por que temer. Existe uma tradição que diz que basta atirar, durante a noite, moedas pretas junto à capela de S. Bartolomeu e este devolverá o que está perdido.

E, finalmente, o desvendar da razão pela qual Aveiro é tão ventoso. O segredo reside na capela de S. Bartolomeu. A próxima vez que estiverem quase a descolar enquanto atravessam a avenida, saberão que a porta da capela está aberta quando não devia. O moço acorrentado estará a correr pela beira-mar. “O vento é obra do diabo”. A razão pode ser esta ou então é o facto das ruas do bairro estarem orientadas para norte para arejar as casas do cheiro a mar.

As tradições mais peculiares das ruas modestas e esquecidas revelam o modo de vida dos moradores, no que acreditam e no que os levou a acreditar.

Estender da Roupa

A região da Beira-Mar é lembrada por muitos de diferentes formas. Quer seja pelas desavenças entre Marnotos e Ceboleiros, ou pelas suas casas coloridas.

Pelos seus moradores, é recordado por ser um local soalheiro. Contam que, na altura, não havendo outra forma de secar a roupa, mas também levados pelo tempo favorável, estendiam as suas roupas nos estendais das suas janelas. Este hábito, ainda parcialmente presente nos dias de hoje, deixa as ruas com variadíssimos retalhos de cor, dando-lhes nova vida, tornando-as numa paisagem sem igual.

Neste contexto, surge o sr. Evaristo. O sr. Evaristo, recordado como chefe da câmara e fiscal da altura, não gostava de ver as casas pitorescas do bairro típico tapadas pela roupa estendida. Por este motivo, e como tinha tal poder, multava os moradores que tinham as roupas estendidas à janela. Mas não era apenas este hábito que era repreendido pelo sr. Evaristo. Aos moradores também não era permitido sacudir os tapetes à janela.

Esta caricata personagem ainda pregava algumas partidas como vingança à desobediência. De entre elas, tirava a roupa do estendal, fazia-lhe nós e molhava-a.

Em contrapartida, os moradores elaboraram uma solução para escaparem à coima. O primeiro habitante a avistar o sr. Evaristo, avisava os restantes de modo a poderem recolher a sua roupa, sem que ele a visse. Esta artimanha ainda poupou uns trocos a alguns moradores.

A roupa à janela é sinal que os cagaréus ainda habitam a cidade.

Muralhas de Aveiro

Esta história remonta ao séc. XV. Após um incêndio que ocorreu no início deste século, o infante D. Pedro ordenou a construção de uma muralha. Na realidade, era mais um muro honorífico, para proteção não serviria pela simplicidade da construção. Apenas imponente nas portas, torres e na porção virada para a Ribeira do côjo, antiga designação para cais, pela necessidade de segurança. Nas restantes secções, assemelhava-se a um simples muro. Aponta-se que a razão para a sua construção tenha sido a vaidade e orgulho pela verdadeira vila burguesa que Aveiro seria na altura.

Apesar de não consensual, afirma-se a existência de oito portas nesta muralha: da Vila, do Sol, do Campo, do Côjo, da Ribeira, do Alboi, de Rabães e de Vagos. As portas da Vila, Ribeira e Vagos, sendo as mais importantes, possuíam porta dupla que criava um átrio solene.

A duração da obra ninguém sabe ao certo. O início foi em agosto de 1418. Mais de 30 anos depois, diz-se que a construção não estava concluída. Antes da edificação, existia uma única freguesia, a de S. Miguel. Depois, para além desta que seria a mais nobre, criou-se a do Espírito Santo a Sul e fora da muralha, a da Vera-Cruz e a da N. Sra. Da Apresentação. As últimas, em conjunto, formavam a Vila Nova, localizada a Norte, conhecida como zona de pescadores. Em S. Miguel, os moradores designavam-se de Ceboleiros, já os da Vila Nova eram os Cagaréus.

Devido à crise da Barra de Aveiro, o muro deixou de ser reparado e pouco a pouco as suas pedras foram caindo. Mas não foi este o seu fim. Algumas foram utilizadas nas obras da Barra, para a construção dos molhes. Esta obra, atualmente ainda de grande exigência técnica, na altura teria sido bastante desafiante. Foram necessários 6 anos para a sua conclusão e uma exorbitante quantidade de mão-de-obra. Depois de um período de grande crise económica e social, a reabertura da Barra revitalizou a região aveirense.

Retomando às pedras da antiga muralha, foram ainda usadas para a construção do antigo Liceu José Estevão, atual Escola Secundária Homem Cristo, e para os paredões dos canais da Ria. Os habitantes também usufruíram delas, usando-as para reparar as suas casas.

Mais tarde, quando o templo de S. Miguel foi demolido, ficaram apenas duas freguesias, Vera-Cruz e N. Sra. Da Glória. Separados por um canal e com alguma rivalidade à mistura, permaneceram as designações, cagaréus e ceboleiros respetivamente... mas isso já é outra história.

Das muralhas de Aveiro, hoje não há vislumbre, mas as suas pedras permanecem nas construções aveirenses. Onde ao certo? Ninguém sabe.

São Gonçalinho

No bairro da beira-mar, se fosse possível, era bem provável que os santos fossem convidados a opinar se o jantar necessitava de mais tempero. Seriam convidados a estar presentes nos aniversários, a regar as plantas dos vasos que partilham o espaço nas varandas com gatos e, quem sabe, até a assistir aos jogos do beira-mar, se gostassem de futebol. Aqui os santos são da família, são tratados por “tu”. É na união entre o sagrado e o profano, algures entre o humano e o divino, que se encontram as tradições das festividades em honra de S. Gonçalinho. No fundo, mais se assemelham a uma grande festa no bairro.

Pode ser sacrilégio e até perigoso afirmar que, afinal, o S. Gonçalinho, “o nosso menino”, não é de Aveiro nem por cá passou. Muitos defendem fervorosamente o contrário, que “passou, sim senhor!” por esta terra. Natural de S. Salvador de Tagilde, concelho de Guimarães, viveu na segunda metade do século XIII em Amarante. O frade dominicano escolheu levar uma vida eremítica e mendicante. Peregrinou até Roma e Jerusalém e voltou às suas origens sem bens. Morre a 10 de Janeiro, agora dia de S. Gonçalinho.

Para se ser santo é necessário um milagre e, ao que parece, ter muita lábia. Diz-se que foi graças a essa virtude que conseguiu arranjar os fundos para concretizar um dos seus milagres, a construção da ponte de Amarante, sobre o rio Tâmega. S. Gonçalinho é representado com uma bengala que, segundo a lenda, convertia rochas em vinho ou água quando nelas tocava. É-lhe atribuído também o milagre dos peixes. Relata-se o prodígio de ter conseguido convencer peixes a saírem fora de água para serem pescados e comidos. No final, as suas espinhas foram atiradas de volta à água, ganhando os peixes vida novamente. A este santo pede-se de tudo, desde a cura de maleitas físicas até à solução para os problemas do coração. Mas não abusem “do menino”, que ele é vingativo.

Manter o S. Gonçalinho feliz, sejamos sinceros, é um doce esforço. A memória defende que as festividades em sua honra acontecem desde 1875, embora o registo escrito se refira à sua ocorrência desde 1935. Organizadas pela Mordomia de São Gonçalinho, prolongam-se por um fim-de-semana alargado, o mais próximo de 10 de Janeiro.

Nestas celebrações, o pagar de promessas é sinónimo de festa. Pagam-se gulosas promessas cobertas de calda de açúcar, as cavacas, que são atiradas do alto da capela. Chovem toneladas de cavacas e alguns devotos chegam mesmo a atirar o seu peso em cavacas. Quem está no cimo, vê cá em baixo um mar de guarda-chuvas e redes que ondulam ao sabor do movimento das cavacas. Avista-se por entre os sorrisos, quem decida usar um capacete, pois as cavacas que se atiram, ao contrário das que se encontram nas pastelarias durante todo o ano, são duras e atingem uma velocidade considerável.

Apesar da controvérsia, há quem defenda que o S. Gonçalinho efetivamente passou por Aveiro e que, durante a sua estadia, atirava pão aos que se isolavam em ilhas quando tocados pela peste e daí até aos dias de hoje, a história materializou-se em algo mais doce.

Protagonizada pelos mordomos, realizada à noite dentro da capela, depois de se afastar os bancos do caminho, ocorre a Dança dos mancos. Nesta, os mordomos simulam que se desequilibram, cantam e dançam bamboleando como se tivessem dores ou problemas ósseos. Na verdade, estão a pedir proteção antecipada a S. Gonçalinho, que também cura doenças ósseas. Após o milagre da cura, os devotos oferecem as suas bengalas ao santo.

“Um Toque de Estranheza”

– uma história de Agnes

Tinha esta ideia de tentar viver no estrangeiro durante algum tempo, para me empurrar para fora da minha zona de conforto. Em 2010, cheguei a Aveiro para o que acreditava serem 6 meses. Contudo, ainda aqui estou.

Aveiro é uma cidade pequena fascinante. Na realidade, uma cidade grande pelos padrões da Letónia. Tem um belo encanto, com os canais e os barcos com toques artísticos que dão caráter ao cenário, que fazem o centro ganhar vida enquanto o tornam romântico e colorido.

Aveiro até tem um lado arrepiante porque nunca, na minha vida, vi um sítio onde o centro comercial fosse ao lado do cemitério. Ao pôr-do-sol, aqueles mausoléus seriam o cenário perfeito para filmar cenas de um filme de terror.

A Universidade de Aveiro continua a ser o meu lugar preferido para estudar. Tem a biblioteca mais bonita, diria até mesmo espiritual. A vista para a Ria de Aveiro e a luz do sol tornam-na mágica. É também onde conheci o meu marido. Assumi que ia voltar para a Letónia para terminar os meus estudos, e que a nossa relação eventualmente acabaria. Bem, não foi isso que aconteceu. Ele é a razão pela qual eu voltei para Aveiro 3 anos mais tarde.

Desta vez, deixar a minha vida na Letónia para trás foi muito difícil. De partir o coração, quando penso no quão difícil foi para a minha família deixar-me ir. Sabendo que eu estava a deixar a minha terra natal por aquilo que sabia que, no fundo, podia ser para a vida toda, comecei a ver Aveiro com outros olhos. Talvez de forma mais crítica, mais realista. Isto já não era uma aventura de 6 meses. Todos os dias, em todas os contextos, há ocasiões ou diferenças culturais que me fazem sorrir ou me deixam louca. Quero dizer, ainda acho estranho quando 3 pessoas na mesma sala se chamam João.

Sempre me senti acolhida, mas o sentimento de que sou estrangeira nunca me deixou. É difícil descrever, mas há regras não escritas e gestos inexplicáveis, palavras e atitudes que me relembram que não sou portuguesa.

Mas há tantas coisas aqui que me fazem feliz. A primeira é o número de dias soalheiros. Eu acho que sorrio mais aqui do que na Letónia por causa do sol. O oceano não para de me encantar. A minha paixão é a Costa Nova, com as suas casas de pijama, tão giras, tão únicas. Aprecio os dias de sol com ondas gigantes na Primavera e Outono, quando há menos pessoas na praia. Adoro o café e o cheiro que escapa das padarias quando passamos por elas.

Acredito que os Portugueses são das pessoas mais abertas e tolerantes do mundo. E, em geral, adoram crianças. Olho para o lado por um segundo e a minha filha de 2 anos está a tirar coisas das prateleiras do supermercado e a pô-las no chão. Uma senhora, pacientemente, apenas as punha de volta no sítio. Ainda nem mencionei as pessoas de mais idade, prontas a ajudar a minha filha a divertir-se com a confusão que criou.

Houveram muitas situações em que aprendi lições importantes e me reavaliei a mim e à minha atitude. Mas continuo a precisar de me relembrar de levar as coisas com calma.

Quando alguém me pergunta se me vejo a viver em Aveiro para o resto da minha vida, digo sempre que não. É assim que me sinto, mas há uma grande probabilidade de que assim seja. Aveiro é um local agradável para se estar e tem um lugar particularmente especial no meu coração.

“A Transgressão do Pensamento”

– uma história de Ahmad

Quando a guerra na Síria começou em 2011, eu tinha apenas 16 anos e estava pronto para me tornar um revolucionário. Gradualmente, a revolta contra o Presidente Bashar al-Assad tinha-se tornado numa guerra civil de grande escala e o meu pai estava à procura, com mãos e pés, de uma forma de me tirar do país. E conseguiu. Ele encontrou uma forma de eu estudar em Aveiro. Tinha de aceitar porque era isso ou mudar-me para estudar na cidade de Homs, onde a guerra estava a caminho. Era melhor ideia viajar 5000 kms e estudar em Portugal do que a uma hora de distância em Homs.

Eu vivia na capital, que era o sítio mais seguro para se estar. Com o começar da revolução, eu tinha uma visão de mudança. Estava envolvido da única forma que conseguia, numa escala bastante pequena. Não me vejo como alguém que tenha feito muito quando houve pessoas que se comportaram como verdadeiros heróis. Acreditava que algo poderia ser feito, tinha ideias. O que era um crime grande o suficiente.

O último ano que vivi na Síria foi o ano mais fantástico da minha vida. Havia um grupo disposto a mudar o sistema. Associei-me a pessoas fantásticas, víamos filmes, falávamos, aceitávamos as ideias uns dos outros. Havia alguma esperança, mas a pressão, incertezas e medos estavam a crescer com força. Depois, a maioria deles foi-se embora. Os dias estavam a passar e a esperança continuava a desvanecer. As pessoas começaram simplesmente a deixar a Síria. A este ponto, era claro para mim que, no que tocava ao assunto da Síria, era algo maior do que eu, maior do que a minha geração. A minha geração já estava a deixar o país e se a minha geração estava a escapar, não havia muito que pudesse ser feito. Dei o que tinha a dar e tudo ficou sem esperança. Quando a notícia sobre a bolsa de estudos chegou, tudo mudou da noite para o dia.

Nunca tinha viajado antes. 2015 viu o meu primeiro voo de sempre, o meu primeiro e único destino. Lembro-me que Aveiro estava enevoado quando cheguei, a minha cabeça estava igual. Não me lembro dos primeiros 2 meses, era tudo muito confuso. Era muito jovem. De repente, dormia numa cama nova, numa cidade nova, num país novo.

Depois de cinco anos, estou estabelecido em Aveiro. Estou a trabalhar como engenheiro civil numa grande empresa e tenho mais amigos Portugueses do que internacionais, mas, no geral, não sinto que pertença a locais. Tenho sentimentos e memórias sobre os locais e ou os adoro ou não. A maioria das minhas memórias de Aveiro são adoráveis. Já estive em muitas cidades, mas nunca senti o mesmo aconchego que sinto em Aveiro. Já estive noutros lugares e gostei, mas à noite é aqui que eu gosto de dormir.

Não sinto falta de nada em particular da Síria. Voltei lá em 2017 e confirmei isto. Não é o mesmo país. Mudou demograficamente e as pessoas nas ruas são muito diferentes. Têm um olhar morto nas suas caras. Não têm vida nenhuma. O tempo é irrelevante. Não interessa que dia é, que horas são, é tudo o mesmo. Acordas, vais buscar alguma comida e estás preocupado. Preocupaste o dia todo e a noite toda. E isto é a classe média. Não tenho a mínima ideia de como será para as pessoas pobres.

Já ouvi de muitos Portugueses que sou, às vezes, mais Português do que os Portugueses. Acredito que ambos, a comunidade local e os recém-chegados, precisam de se adaptar. Fiz um esforço de, não só aprender a língua, mas também de perceber a mentalidade Portuguesa e os costumes. Eventualmente, as pessoas pararam de mencionar a minha nacionalidade e começaram a ver-me como um ser humano. Isso foi o que eu sempre quis.

“Raízes Sorrateiras Crescem Sob Céus Noturnos”

– uma história de Ayman

Nasci e cresci no Egito. Em 2001, decidi que era hora de sair do meu país para encontrar uma vida melhor. Então, o Canadá tornou-se minha segunda casa oficial, onde estudei e trabalhei.

O tempo passa e, às vezes, há algo em ti que anseia por novas aventuras. Comecei a apaixonar-me pela ideia de me mudar para a Europa depois de algumas viagens a Itália, Portugal e Espanha. Eu estava determinado a mudar-me para o sul da Europa, onde senti que as pessoas viviam para aproveitar a vida, em contraste com o conceito norte-americano, onde parece que as pessoas vivem para o trabalho e as suas carreiras, e talvez apreciem a vida se tiverem oportunidade.

Em 2009, encontrei uma posição dentro de um projeto de três anos em Aveiro e decidi aceitar o desafio e mudar-me para Portugal. Supus que viveria aqui durante alguns anos e depois voltaria para o Canadá ou encontraria outro lugar. MEU! Eu estava enganado!

Não é fácil mudar para um país onde não conheces a língua. Essa foi uma primeira para mim. Eu não sabia uma única palavra em português quando cheguei em Aveiro. No entanto, os portugueses tentam verdadeiramente, tanto quanto conseguem, conversar contigo. Já vi isto por todo o lado em Aveiro, mesmo em pequenas lojas, com pessoas mais velhas que não sabem uma palavra em inglês. Eles tentam e tentam expressar o que querem, de todas as maneiras que podem. Eu adorei tanto isso. Eu senti-me bem-vindo aqui. Comecei a conhecer portugueses e a fazer amizades com muitos deles. Foi encantador.

Aveiro tem um charme único. É uma cidade adorável, com pessoas adoráveis que te acolhem sempre. Tens a praia a apenas alguns minutos de carro e podes apreciar a vista do oceano em qualquer época do ano. Sentes que conheces todos ao teu redor e eles conhecem-te, mesmo aqueles com quem ainda não falaste. Para alguém de uma cidade maior como o Cairo, às vezes fica pequeno demais. Também gosto que possas ir a qualquer sítio em Aveiro a pé. Eu não faço isso! Eu conduzo para todo o lado. Novamente, o efeito de menino da cidade grande.

Os finais do dia e as noites calmas de verão são as melhores. Uma das minhas coisas favoritas de fazer em Aveiro, especialmente depois de um longo dia de trabalho, é sentar-me num dos muitos cafés/bares e desfrutar de uma bebida refrescante enquanto aprecia o pôr-do-sol ou as estrelas em noites de céu limpo.

Ao longo dos anos, sem que eu me apercebesse, a cidade cresceu em mim, eu também cresci e me tornei parte de Aveiro. Eu encontrei amor aqui. Eu conheci minha esposa em Aveiro e casámos num local encantador fora da cidade. Viver aqui com minha esposa e nosso cão tornou fácil para Aveiro tornar-se o lugar para onde eu volto.

Não posso dizer que vou morar em Aveiro para sempre, acredito que ainda há novas aventuras para eu conquistar, provavelmente com novas cidades e países onde morar, e tenho outros dois lugares a que chamo de lar. No entanto, definitivamente, por enquanto, Aveiro é minha casa.

“A Hora Dourada”

– uma história de Josafat

Nunca esteve nos meus planos vir para Aveiro. Mas um dos meus tios sempre falou tão bem da cidade e da universidade que acabei por vir para cá estudar Administração Pública, a área de que gosto bastante. Não foi fácil chegar cá, há tantos requisitos e papelada que é preciso para obter um visto. Apesar disso, tudo pareceu muito repentino. Lembro-me de me preocupar e pensar se gostaria sequer da cidade. Hoje em dia, dificilmente me conseguem tirar de Aveiro.

Lembro-me de as pessoas dizerem o quão difícil iria ser. Eu gosto de enfrentar as coisas diretamente, não sou alguém que tenha medo de desafios. Não importa o quê, eu sei que posso sempre encontrar uma maneira de enfrentá-los e passar para o outro lado com alguma facilidade. O que é bom, porque eu tinha alguns desafios pela frente. Quero dizer, eu vim de um país diferente para morar sozinho numa cidade onde não conhecia ninguém.

Com o tempo, percebi que havia mais, mas quando cheguei em Aveiro, a primeira impressão que tive foi de que era uma cidade muito calma. A minha primeira semana em Aveiro foi muito diferente do que estava habituada, não tinha nada para fazer. Então comecei a explorar e caminhar pelo campus da universidade. Tirar fotos disso da universidade fez sentir-me bem. Explorar este novo mundo através de uma lente ajudou-me a descobrir uma beleza única. Eu acho que é uma das melhores e mais bonitas do país. Tudo está tão próximo que facilita a vida de quem aqui vive e estuda.

Algumas das minhas melhores lembranças acontecem na praça ou com meus amigos no bar dos estudantes. Lembro-me do meu primeiro jantar com todos do meu curso. Bem, eu lembro-me de parte. Podemos ter nos divertido um pouco demais. Até hoje, ainda não sei como acordei nas residências do campus. Eu nem morava nas residências! Foi fantástico. Eu também tenho uma música que foi escrita sobre mim e que as pessoas cantam sempre que jantamos juntos ou saímos. Podem pensar que é idiota, mas eu gosto realmente disso. Começas a construir ligações com a cidade e as suas pessoas. Eu sou parte de algo maior que eu aqui, isso faz-me sentir especial. Mas também nunca esqueço que cheguei onde estou hoje, em grande parte, devido à força e apoio de meus pais, familiares e amigos. E ainda sinto falta deles todos os dias.

Aveiro é uma cidade muito bonita e encantadora. E as pessoas aqui são tão afetuosas que me lembram Luanda, a minha cidade natal. Conheci pessoas que vejo mais como família do que apenas como amigos. Vivi experiências únicas e sou acolhido em todos os lugares a que vou. Estes têm sido os melhores anos da minha vida.

“A Completa Novata”

– uma história de Márcia

Ser imigrante nunca foi para mim. Alguns podem dizer que esta é uma afirmação ousada, outros que é uma afirmação ingénua. Suspeito que tenha a ver com a minha visão de principiante sempre em mudança. E podem, sim, chamar-me de principiante, mas não no que toca à mudança. Toda a minha vida tem sido à volta de mudança e adaptação. Tenho estado sempre em movimento e continuamente a descobrir novos lugares para chamar de casa desde pequena. Escolhi viver em Portugal porque me faz sentir em casa.

Quando decidi sair o meu país, temi que as minhas hipóteses de achar emprego fossem baixas, visto já não ser nova. Apesar disso, aqui estou eu, a fazer um doutoramento na Universidade de Aveiro. Estou a fazer o que mais gosto, aprender e ensinar.

Provavelmente já sabem que Portugal e o Brasil partilham a mesma língua. Falamos todos português, por isso é fácil nos perceber-mos uns aos outros, certo? Bem, eu pensei o mesmo. Foi só quando cheguei aqui que me apercebi das diferenças na comunicação. Deparei-me com imensas situações em que estávamos todos a falar português, mas a nossa maneira de nos exprimir era completamente diferente. Isto tem sido um grande desafio para mim.

Desde pequena que o meu querido pai me disse para olhar para o mundo como se este fosse um caleidoscópio de perspetivas, pelo que estou habituada a não ver só uma verdade e a estar ciente do rico e complexo mundo da interpretação. É assim que encaro a minha experiência em Portugal, sem preconceitos ou opiniões erróneas sobre o país e as suas gentes. Decidi abrir o meu coração e a minha mente e deixar a vida tomar o seu rumo.

Nunca me apeguei muito a lugares, só a pessoas. Estas transformam a paisagem em experiências multi-sensoriais. São as minhas raízes e, por isso, sinto-me sempre numa cidadã global, experienciando tudo como se pela primeira vez. Não sou uma imigrante, sou uma completa novata a olhar para uma tela branca, procurando expressar a linguagem do amor.

“Nostalgia da Espuma do Mar”

– uma história de Mariana

Naquele precioso momento em que abri o meu bem-viajado guarda-chuva, este foi perdido. Aveiro, precisamos mesmo de chuva e vento ao mesmo tempo? Aparentemente, sim. Foi o meu primeiro dia aqui. Eu até tirei uma fotografia para capturar a minha cara feliz cheia de entusiasmo de primeiro dia com esta abençoada receção chuvosa e ventosa! No entanto, a arte urbana mesmo fora da estação de comboios deslumbrou-me o suficiente para ficar tudo melhor.

O meu marido e eu procurávamos um sítio novo para viver desde que voltámos da Califórnia. A planear tudo com antecedência, sabes? Na verdade, estávamos a considerar a Austrália, Nova Zelândia ou outro país de língua inglesa.

Foi enquanto viajávamos pela Europa que acabámos por conhecer Lisboa. De alguma forma, parecia-se um pouco com a Bahia, a nossa casa. Algumas praças e ruas tinham o mesmo nome, e também consegues encontrar semelhanças na estética urbana, por causa da conexão entre Portugal e o Brasil. Começou a parecer certo. Depois, ligaram-me com uma proposta para um doutoramento na Universidade de Aveiro, precisamente na área de estudo do meu interesse. Adicionalmente, Aveiro tem o meu acompanhante de longa-data, o mar, extremamente perto. O meu marido e eu adoramos surfar, então só poderíamos escolher uma cidade com ondas espetaculares.

Imensas pessoas aconselharam-nos a não tomar um risco destes, “Ó, mas por que razão vão abandonar o vosso país quando estão tão bem estabelecidos cá?”, “Não vás, já tens cá os teus amigos, o teu trabalho, as tuas raízes aqui!”. Nós queríamos sair da nossa zona de conforto, queríamos crescimento pessoal e novos desafios profissionais.

Sem dúvida, a parte mais difícil? Deixar a minha família. Eu vim sozinha, o meu marido teve de ficar no Brasil a tratar de burocracias, para um sítio onde não conhecia ninguém. Claro, eu falava e interagia com pessoas a toda a hora, mas no final do dia, chegava a casa sozinha. Eventualmente, encontrei um grupo de igreja que me acolheu. Trataram-me como família, o que me ajudou a sentir parte da comunidade.

Quando vais viver para um país novo, tens de reconstruir e reorganizar a tua vida outra vez. Desde as necessidades mais básicas, como onde é que posso encontrar os produtos mais baratos ou o que será que devo vestir para este frio, até emprego e necessidades financeiras. Precisas de aprender como os sistemas de saúde e de educação funcionam.

Sinto falta do cheiro do mar. Gosto de ir à Costa Nova e à Barra, mas não é o mesmo. Na Bahia, podes ficar na praia até o final do dia, a relaxar na toalha de praia ou a nadar nas águas quentes. Tenho saudades disso. Aqui, tens um momento de 5 minutos de água gelada e vento e areia a voar por todo o lado. Mas, se deixas o teu país carregando as tuas memórias como um peso, se tu as vives como um lembrete das coisas que deixaste para trás, nunca conseguirás aproveitar a tua nova vida ao máximo.

Passo a passo, tu constróis um novo tu num novo país. Os teus hábitos mudam. Eu costumava comer tapioca constantemente, mas é mais difícil de encontrar aqui, por isso guardo-a para ocasiões especiais. Costumava vestir vestidos longos, mas agora eu gravito mais para roupa que me mantém quente. Muitos aspetos da tua vida têm de mudar. Tu adaptas-te. Para mim, a coisa mais importante é vir com uma mente aberta. Ainda estou a descobrir as nuances culturais, mas eu já adoro Aveiro.

“Vagueando sem Vergonha”

– uma história de Mina

Olá, sou a Mina e... sou oriunda do Iraque.

Sim, adivinhaste, palmeiras cheias de tâmaras (a fruta), o antigo local de nascimento da escrita, Saddam Hussein, as guerras...

Mina, em português, tanto pode significar mina de ouro ou mina mina. Como aquelas que explodem. Percebeste a piada, certo?

Nasci no Iraque, vivi alguns anos na Jordânia e depois vim para Aveiro, com treze (geralmente chamada de “idade da parvoíce”). Vivo em Aveiro há onze anos e, meu deus, que experiência de mudar uma vida tem sido.

Ainda me lembro do primeiro dia de escola. Saltei para uma nova turma, num país novo e apenas sabia dizer “Bom dia” e “Obrigada”. Os meus colegas receberam-me calorosamente em inglês, fizeram-me perguntas de vez em quando e eu senti-me agradecida por eles serem tão queridos comigo. No entanto, não nos tornamos amigos.

Os anos seguintes da minha adolescência foram difíceis. E é suposto ser assim, certo? Sentes-te incompreendido e anseias por proximidade, mas ainda assim afastas as pessoas. Principalmente quando aprender a língua tinha os seus altos e baixos e comunicar com as pessoas não era fácil para mim.

Eventualmente, a catástrofe passou e, lentamente, fui renascendo. A cidade estava diferente aos meus olhos. Há árvores por todo o lado, o que eu adoro, o quente brilhar do sol e o vento brincalhão que dança com os teus cabelos. Há sorrisos quentes e assimétricos em pessoas com corações assimétricos, tal como eu. Sorrimos uns para os outros e dizemos “Bom dia”, “Boa tarde”, “Como estás?”.

Eventualmente, encontrei os meus amigos. Alguns deles estão agora noutras cidades e a maior parte de nós não sabe onde estará ou para onde irá no futuro, mas está tudo bem.

Hoje posso dizer que adoro Aveiro, com honestidade e sem vergonha. Amo o parque. É aquele refúgio onde podes caminhar descalço sobre a relva, sentir suavemente o cheiro das flores no ar, admirar a beleza dos reflexos prateados da água do lago e apenas... ser. Os teus olhos e o teu coração vão saborear a preciosidade, se os deixares, claro. É como se fosse possível haver paz na terra.

As pessoas perguntam-me sempre: “és mais iraquiana ou portuguesa?”. Eu digo que não sei. Ainda tenho o sangue quente, as especiarias Árabes e um bocadinho de dança do ventre nas veias. Mas não concordo com a opressão no Médio Oriente. Portanto, respondo “ambos”.

Aveiro é a minha casa agora. É onde me sinto segura. É onde tenho os meus amigos, a minha família, as pessoas que amo. Mas ainda continuo a vaguear e a questionar onde me irá a vida levar.

“Encontrados em Estradas Paralelas”

– uma história de Nastya

A vida nem sempre corre como planeamos. Eu tinha a carreira dos meus sonhos, amava a cidade onde morava, tinha imensos amigos, uma vida cultural e social, ganhava o suficiente para viver como queria e viajava muito. No entanto, devido a reviravoltas imprevisíveis da vida, acabei por ficar em Aveiro.

Nunca sonhei viver no estrangeiro, adoro a minha terra natal, o que explica porque é que, quando inicialmente cheguei para um Serviço de Voluntariado Europeu, não vi Portugal como a minha casa, nem Aveiro como a minha cidade. Mas depois de 10 anos aqui, desenvolvi uma ligação especial com Portugal. Estudei aqui, comecei aqui uma família e até fui co-fundadora da Agora Aveiro. Portugal tornou-se a minha segunda terra natal.

Acho que os Portugueses têm muitas semelhanças com os Ucranianos, ainda assim, as minhas raízes continuam as mesmas. Ainda sinto saudades de casa. Tenho uma família e duas crianças aqui, mas Kyiv é o sítio onde me sinto como eu mesma novamente, embora a vida lá de momento não esteja fácil. Adoraria poder viver em ambos, Ucrânia e Portugal. É difícil dizer aquilo de que sinto falta exatamente. Provavelmente do “espírito” e atmosfera da cidade, as pessoas e a vida cultural, conversas profundas, a rotina atarefada e a minha família.

A única forma que encontrei de combater as saudades é de voltar lá com mais frequência, convidar os meus pais quantas vezes eu puder e falar ucraniano com os meus filhos. Leio literatura ucraniana, vejo filmes e ouço música, a guerra recente deu lugar a tantos livros incríveis, autores fantásticos e cineastas.

Senti-me acolhida em Aveiro desde o início, os Portugueses são uma das melhores pessoas para conhecer. Muito carinhosas e respeitadoras. Senti isso especialmente quando tive de fazer uma apresentação em frente a crianças portuguesas na altura em que eu mal conseguia pronunciar uma palavra na língua delas. As crianças foram muito gentis e curiosas quanto à minha personalidade. Mesmo quando os aveirenses não te percebem, mesmo assim fazem o seu melhor para te ajudar.

Sinto-me como uma pessoa local em Aveiro. Conheço as estradas todas, muitos atalhos, restaurantes locais e outros sítios onde apenas os Portugueses vão. Falo português e consigo facilmente tratar de qualquer problema sem a ajuda de um cidadão da cidade e tenho os meus próprios amigos com quem ter daquelas “conversas profundas”. De momento, sou igualmente uma cidadã de ambas as cidades. Promovo Aveiro entre os meus amigos com tanto carinho como o faço para Kylv. Por isso, sim, definitivamente tenho um sitio especial para Aveiro no meu coração.

“Um Coração sem Descanso”

– uma história de Nataša

Hoje, onze anos depois de me ter mudado para Aveiro, sinto-me mais local aqui do que na cidade onde nasci, no país que era, na altura chamado Jugoslávia.

Testemunhei algumas guerras e outros infortúnios no meu país, mas nunca pensei que viveria no estrangeiro durante muito tempo, principalmente porque adorava o meu trabalho, vivia bem, viajava muito e era feliz.

Mudei-me para Portugal porque quis e não porque tive de o fazer. E pelo melhor motivo possível, encontrei o meu amor aqui.

Para mim, para integrar completamente a vida da cidade, nunca foi suficiente apenas “existir” aqui. Senti a necessidade de me tornar um membro ativo da comunidade e percebi que, na verdade, não havia nenhuma instituição onde pudesse realizar plenamente esse desejo. Foi por esse motivo que, juntamente com alguns amigos, co-fundei a Agora Aveiro, em 2010.

Trabalhar na Agora Aveiro deu-me oportunidade não só de promover valores importantes e desenvolver projetos significativos, mas também de encontrar pessoas incríveis e ficar a conhecer muito bem a minha nova cidade, não apenas superficialmente. Também me tem dado muitas oportunidades para viajar e eu adoro isso, mas sabe sempre bem voltar a casa.

Há sete anos, tornei-me oficialmente “Portuguesa” quando obtive o meu passaporte Português. A verdade é que não me sinto particularmente portuguesa, mas também não me sinto sérvia. Há coisas que adoro em ambos os locais, mas o sentimento de patriotismo é algo que perdi no momento em que percebi a facilidade com que um país pode mudar o seu nome, as suas fronteiras, a bandeira ou a ideologia. Sinto-me uma cidadã global e uma local em vários locais pela Europa.

Adoro que Aveiro tenha várias coisas como festivais e eventos culturais a acontecer constantemente. Na Sérvia, uma cidade do tamanho de Aveiro é, geralmente, uma cidade fantasma, sem jovens, sem negócios inovadores e com poucos eventos culturais. Além disso, amo o oceano. Mesmo depois de uma década, continua a fascinar-me. Quando vou à Costa Nova, no momento em que piso a areia, sinto-me como se fosse a primeira vez que o vi, em 2007.

Aveiro é agora a minha cidade e, mesmo que não fique aqui para sempre, irá sempre ser uma marca significativa no meu mapa pessoal. Embora às vezes sinta falta da energia das grandes cidades, consigo lidar com isso viajando para Belgrado e outras capitais com bastante frequência. E aí, depois de alguns dias ou semanas de uma confusão hipnotizante é realmente bom voltar a este aconchegante porto de abrigo.

“Uma Casa Longe de Casa”

– uma história de Valentina

Sempre soube que queria viajar e experienciar a vida noutros países, e assim que eu tivesse a oportunidade, estudaria fora de Itália.

Eu casei com um homem muito aberto à mudança. O nosso país não nos oferecia muito em termos de estabilidade económica, então ambos queríamos ir embora. Propuseram-lhe uma posição na Universidade como músico acompanhante, e eu vim com ele. Acho que posso afirmar que somos migrantes económicos, mas no final do dia, foi amor que me trouxe para Aveiro. Mesmo tendo estudado Literatura Lusófona e Hispano-americana e Tradução Intercultural em Roma, nunca tinha ouvido falar de Aveiro. Hoje, é uma cidade que aprendi a conhecer e a apreciar.

Não foi muito difícil chegar aqui, porque sou uma cidadã da União Europeia, não tive de passar por muita burocracia. Não tenho recebido nenhum comentário negativo por ser italiana. Pelo contrário, parece que toda a gente gosta de Itália, mais que os próprios italianos. Toda a gente me pergunta se eu gosto de viver aqui e se eu prefiro Portugal a Itália. Apesar disso, não minto, foi difícil.

O primeiro ano foi duro. As pessoas locais são ótimas, mas existe algo único em não ser de cá que apenas os não locais experienciam e percebem verdadeiramente. Os estrangeiros acabam por se ajudar imenso mutuamente, talvez algumas iniciativas para nos conhecermos e partilharmos experiências tornaria isto mais fácil. O meu marido viveu aqui sozinho durante alguns meses, portanto tínhamos de encontrar um sítio onde poderíamos todos morar. Passámos imenso tempo à procura. Eu tinha um filho de 11 meses para cuidar, não tinha outra família nem amigos. Tudo isto fez com que pudesse facilmente ver Aveiro como um sítio deprimente.

Comprámos duas bicicletas e usámo-las para explorar a vizinhança. É uma maneira ótima para apreciar as paisagens, desde a universidade até aos edifícios históricos. Usamo-las para ir a todo o lado.

As crises fazem parte da vida de toda a gente, existem sempre desafios e obstáculos para ultrapassar. Dito isto, tive um acidente de bicicleta e parti o pulso. Algo que me trouxe tanta alegria foi também a razão por já não conseguir fazer as coisas que fazia com tanta facilidade antes. Isso deixou-me triste e deprimida. Mas ultrapassa-se.

Decidi continuar os meus estudos musicais seguindo um mestrado em música. Foi na Universidade de Aveiro que consegui fazer amigos. Atualmente, dou lá aulas de italiano enquanto termino a minha pós-graduação em Práticas Artísticas e de Comunidade. Eu estudava medicina antes de me virar para as artes. O meu pai estava muito doente, o que por si só é algo que pesa bastante, mas ter de encarar isso também na escola tornou-se demasiado. Precisava de uma pausa. O tempo passou, mas a minha curiosidade nunca desapareceu realmente, portanto estou a seguir um mestrado em Biologia Aplicada, onde posso explorar e combinar arte e ciência.

Tenho saudades da minha mãe. Gostaria que o meu filho pudesse passar tempo com ela. Também sinto falta dos meus amigos próximos e os laboratórios teatrais de que costumava fazer parte. Eu ainda volto a Itália para atuar com alguns deles, mas não é bem o mesmo. Mas eu tenho os amigos que fiz aqui e os sítios que se tornarem parte da minha vida diária. A família é a minha casa. O meu marido e o meu filho estão cá, por isso Aveiro é a minha casa.

“Para Além das Palavras”

– uma história de Valéria

Deixar o México foi uma experiência agridoce. Eu sabia que era o fim de uma época, mas ao mesmo tempo, não conseguia conceber completamente a enorme decisão que eu estava a tomar. Ainda assim, partir foi uma decisão minha. Felizmente, não fugia de nada. Estava excitada com as experiências e aventuras que me esperavam.

Não sou uma pessoa estática, não gosto de ficar num sítio muito tempo. Vivi em Leiria durante dois anos, mas só em 2016, quando vim para Aveiro, é que senti realmente que pertencia. Apaixonei-me imediatamente por Aveiro.

Subestimei o quão desafiante seria. Por ter uma boa noção da língua, visto que falo nativamente espanhol, pensei que seria fácil integrar-me na comunidade quando cheguei a Portugal.

No início, tinha dificuldade em perceber os cumprimentos. No México, damos um beijo e dizemos olá, outro beijo e adeus, simples! Em Portugal, dois beijos e um olá para toda a gente, mas nem sempre; dois beijos para dizer adeus, mas apenas em algumas situações. Tão confuso! Agora sinto-me mais à vontade, tudo flui melhor.

O meu marido tentou integrar-me na sua família, mas eu queria um grupo só meu. Foi só quando encontrei a SPEAK* que senti ter encontrado um lugar para mim neste novo país. Conheci pessoas que estavam na mesma situação que eu, a passar pelo mesmo processo de adaptação, pelo que partilhamos as nossas incertezas e medos. Sei agora a importância deste tipo de projetos. Foi por isso que, quando cheguei a Aveiro, decidi trazer comigo o programa e fundei a SPEAK Aveiro. Quero ajudar os que estão a passar pelo que eu passei.

Embora pequena, Aveiro é uma cidade multicultural. Uma das razões pela qual a adoro é porque há uma panóplia de nacionalidades a partilhar o mesmo local. Algumas estão apenas de passagem, outras por curtos períodos, mas todas contribuem para tornar Aveiro um sítio melhor. Gosto do facto de me sentir nem mais nem menos bem-vinda que os outros cidadãos. Acredito que ser imigrante aqui é mais fácil. As pessoas são amigáveis e estão tão acostumadas a estrangeiros que a sua presença já faz parte do dia-a-dia.

Na minha opinião, os aveirenses são afáveis e pacientes com os recém-chegados, ainda que não completamente dispostos a sair da sua zona de conforto. Tenta perceber o que os estrangeiros querem partilhar, mostra curiosidade para com a aventura de outrem e aprende com as suas culturas. Estes pequenos passos podem ter um impacto significativo nos que estão longe de casa.

De vez em quando, tenho desejos de comida mexicana e do clima maravilhoso, mas mais do que isso tenho saudades das pessoas do meu coração. Sinto falta de estar junto das pessoas que me conheceram a vida toda, aquelas com quem podes ser tu sem ter de dar explicações. Apesar da distância, mantenho uma relação de proximidade com as pessoas que adoro e sei que quando as voltar a encontrar, sentirei que não passou tempo algum. Nunca será o mesmo que estar lá, mas torna as ocasiões em que podemos estar cara-a-cara muito mais especiais.

Parte de mim teme que até me possa perder um pouco quando voltar à minha cidade no México, que é bem maior do que Aveiro. Acredito que vou conhecer Aveiro ainda melhor do que conheço Querétaro. Faço visitas guiadas da cidade que começam na Ponto do Botirão ou “Ponte do Laço”, se tivesse de escolher, diria que esse é o meu lugar favorito. Foi onde comecei a conhecer a cidade melhor. E quanto mais conheço, mais adoro Aveiro. Sinto-me 100% como uma local em Aveiro. Estou tão feliz por reconhecer isso.

Rosa Gadanho

Professora

Centro Escolar de Santiago

O saber transforma o lugar

Rosa não se considera um herói, mas admite que conheceu vários. “Com alguns deles aprendi muito”.

Rosa Gadanho, recentemente aposentada, foi durante mais de quatro décadas professora. Esteve ainda envolvida na criação das bibliotecas escolares no Município de Aveiro e foi bombeira, em tempos onde só homens exerciam a atividade. “Não queremos cá saias!”, foi a mentalidade que enfrentou e superou. Atualmente, Rosa faz voluntariado no Estabelecimento Prisional de Aveiro. Sempre preocupada com problemas sociais na comunidade, realça “estamos cá para fazer coisas!”.

Começou a sua carreira na educação especial, área em que trabalhou durante 36 anos. Acompanhou de perto a transição das crianças das CERCI’s (Cooperativa para a Educação, Reabilitação, Capacitação e Inclusão) para as escolas regulares. Rosa defende que “o lugar dos miúdos é ao pé de outros miúdos. A forma das pessoas se aceitarem umas às outras é viverem em comunidade”. Foi árduo, as escolas não estavam preparadas para estas crianças. “Algumas ficavam fechadas, sozinhas e isoladas enquanto os pais trabalhavam. Estamos melhor, mas ainda nos falta muito (...) ainda estamos muito longe de um lugar digno para elas”.

Os verdadeiros heróis são aqueles que,
apesar das dificuldades,
do desprezo e do preconceito,
conseguem levantar a cabeça
e ter uma vida digna

Foi na Escola Básica de Santiago que durante mais tempo trabalhou e se dedicou. “Foi uma batalha”, relembra. Uma escola, criada para responder às necessidades de um bairro “problemático” aos olhos de muitos. Um bairro preenchido com famílias com dificuldades, económicas e não só. “No início, as crianças do bairro foram frequentar a Escola da Glória e o impacto foi muito perturbador. Então os poderes instituídos juntaram-se e rapidamente criaram a Escola de Santiago. Toda a gente nos perguntava “porque querem ir para essa escola?”.” A luta contra o estigma e a imagem negativa atribuída ao estabelecimento foi algo que se mostrou frutífero. A criação do jardim de infância e da biblioteca, o foco nas questões ambientais e o esforço coletivo, ajudaram a fortalecer a ligação entre a escola e as famílias. Hoje, a Escola de Santiago nem consegue dar resposta a tanta procura.

E o que é um herói aos olhos de quem já viu muitos? “Para mim, os verdadeiros heróis são todos aqueles que, apesar das dificuldades, do desprezo e do preconceito, conseguem levantar a cabeça e ter uma vida digna. É muito difícil.

Rosa guarda consigo imensos momentos marcantes ao longo de tantos anos de trabalho. Relembra episódios atrozes que ninguém espera confrontar, mas foi nesses momentos que sentiu as “sinergias da comunidade” a intervir. “Nunca vi tanta gente a tentar encontrar resposta sem comprometer as crianças”, afirma acerca de um desses episódios.

Manuel Barbosa

Chefe dos Bombeiros

Bombeiros Velhos de Aveiro

A chama que não se extingue

Manuel Barbosa demonstra um grande dever cívico. Considera que ao ajudar qualquer pessoa, está apenas a fazer o que lhe compete. “Quando uma pessoa se coloca em risco para ajudar o outro, sem ter conhecimentos ou meios, será sempre um herói”.

Manuel Barbosa é Chefe dos Bombeiros “Velhos” de Aveiro desde 2000. Tendo começado o seu percurso como bombeiro em maio de 1979, completa 41 anos de serviço. “Desde que comecei a exercer a função, verifiquei uma grande evolução nas condições [do quartel, equipamento e serviços]”.

Como Chefe, Manuel começa o seu dia a orientar a equipa, garantindo que os serviços não se acumulam. “Temos também a prestação de socorro que tem que ser gerida. Tenho que garantir que não há nenhum congestionamento nestes serviços, seja de pessoal, equipamento ou tempo de resposta”.

Quando uma pessoa
se coloca em risco para ajudar o outro,
sem ter conhecimentos ou meios,
será sempre um herói

Ao longo dos muitos anos de missão, já passou por diversas ocorrências, desde incêndios a prestação de primeiros socorros. “Nunca ninguém está completamente preparado para isso”. De modo a se proteger e poder prestar auxílio, teve de aprender a não se apegar muito a uma situação, dado que “logo a seguir vem outra”. “Não é de todo fácil. O que mais me afeta é chegar ao local da ocorrência e haver crianças. É a parte mais emocional para qualquer bombeiro, porque as crianças nunca têm culpa. Muitos de nós somos mães, pais, avós e torna-se sempre algo emocional”.

Até hoje, o episódio que mais o marcou foi o incêndio florestal, de 1986, em Águeda. “Começámos a operação por fazer um briefing sobre o modo como iríamos proceder e dividimo-nos em grupos. Infelizmente, o incêndio cercou alguns de nós... Perdemos 13 bombeiros. O fogo foi mais rápido.” Quando conseguiram controlar o fogo e cessar o mesmo, “foi complicado chegar ao local e encontrar os corpos carbonizados de colegas com quem tínhamos acabado de estar a trabalhar lado a lado. Fica sempre aquele sentimento de que poderia ter sido qualquer um de nós. Perante o fogo o homem é um ser frágil”.

Apesar de todas as advertências, momentos complicados e horas longas que a atividade de bombeiro acarreta, o Chefe Barbosa não deixa o quartel tão facilmente. A sua filha e genro são também bombeiros. O sentido de camaradagem e espírito de equipa está fortemente enraizado. “É como uma família!”.

Margarida Gonçalves

Psicóloga

Unidade Clínica da Borralha

Ler as entrelinhas do silêncio

Para muitos, a ideia fantasiosa de um herói é a daquela pessoa que consegue fazer tudo e mais alguma coisa. Porém, Margarida Gonçalves pensa de outra forma. “Um herói, na vida real, não deve ser quem faz tudo, mas quem está presente naquilo que faz, com humildade, gratidão e compaixão”.

Margarida é psicóloga, com bastante experiência no contexto comunitário, social e com idosos. Atualmente, trabalha como psicóloga clínica, não perdendo, no entanto, o contacto com o ambiente social da psicologia, área que lhe interessa desde os tempos de faculdade. Afirma que o seu objetivo é “trazer a psicologia à rua, à comunidade”. Psicologia “sem estigmas e sem preconceitos, que tanto existem ainda hoje”, lamenta.

Só quem é louco, é que vai para o psicólogo”, continua a ser um dos principais preconceitos existentes. A desvalorização da doença mental e a dificuldade em pedir ajuda são fatores que dificultam o trabalho dos profissionais. A forma como a sociedade analisa e se comporta é também um fator determinante para a evolução dos comportamentos, “todos nós somos agentes de mudança”, afirma.

Todos nós temos algo
de novo a aprender com
todas as pessoas com
quem nos cruzamos

Margarida acredita, “todos nós temos algo de novo a aprender com todas as pessoas com quem nos cruzamos”. Coleciona na memória valiosas lições, fruto da experiência e do contacto, da ligação e da empatia. “Nem todos têm de sentir o que estamos a sentir naquele momento, naquele contexto”, aprendeu num dos episódios mais marcantes do início da sua carreira. Era Natal no lar, época em que todos se reúnem, família e amigos, e o lar se enche de animação. Porém, nem todos se sentiam assim. Margarida recorda como se aproximou de um dos idosos, sozinho e desanimado, “doutora, a festa é exterior, não interior”. Para o homem, era mais um dia, Natal ou não, em que não tinha a família em seu redor. “O meu coração tem muita tristeza”, continuou ele, momentos antes de lhe virem as lágrimas ao olhos. “Foi um banho de humildade. É necessário sermos humildes, gratos, olhar para a pessoa no seu todo e termos compaixão”, algo que a psicóloga reconhece estar em falta na sociedade.

Porém, nem tudo corre como planeado e há casos em que não se consegue ajudar. Quem faz a mudança “é a própria pessoa e esta pode não querer mudar”. Aqui destaca a influência da sociedade, a crítica e os olhares. Ao início, Margarida sentia uma revolta interior, mas “a prioridade são as emoções da pessoa, dar espaço e ter noção que a mudança de comportamento não é imediata”. Mesmo não resultando como planeado, o importante é “chegar ao final do dia e pensar se fiz o melhor que podia fazer. Se a resposta for sim, ótimo. Se não, amanhã é outro dia”.

O que faz Margarida mais feliz? A resposta é simples. Conseguir “fazer ver à pessoa que pode ser muito mais do que aquilo que acha que é” e ao final do dia, saber que “naquele momento, naquela situação, eu estive lá”.

João Henriques

Animador

Centro Local de Apoio a Migrantes

Ouvir contra a indiferença

Esta história, como o próprio fez questão de realçar, não é só sobre João Henriques, Assistente Social e Animador no Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes (CLAIM), mas sobre todos aqueles que ajuda diariamente e aos quais quer dar voz.

Há três anos e meio que João trabalha no CLAIM, é aqui que todos os dias presta serviço a migrantes e refugiados. Com vista à sua integração e autonomização no país, presta atendimentos, apoio social e promove atividades culturais. “A minha abordagem no dia-a-dia é, acima de tudo, a de escutar”, explica sobre o seu trabalho. Acredita que só assim poderá realmente colmatar as necessidades daqueles que procuram o seu apoio. Sobre o que o levou a escolher a profissão, afirma não saber explicar, talvez tenha sido por influência da mãe e irmã, também elas assistentes sociais. “Quando tenho consciência de mim, já era o que eu queria ser”, confessa.

Relatos de vidas turbulentas não faltam a quem lhe recorre, pessoas que parecem “por vezes invisíveis”, que, por não estarem integradas na comunidade, acabam por ter dificuldade no acesso aos serviços de saúde, educação e cultura. Pessoas que “precisam apenas de facilitadores que os possam apoiar na concretização dos seus objetivos”. É para estas que João trabalha, escutando os seus problemas e celebrando as suas conquistas. Por estar tão por dentro das dificuldades que enfrentam, sente a responsabilidade de lhes dar visibilidade, “isto não é sobre nós, é sobre as pessoas”.

Enquanto não houver uma maior
abertura por parte da comunidade
para integrar essas pessoas,
estamos a promover a exclusão social

As dificuldades não se sentem só no acesso a serviços básicos. Também se ouvem nas conversas racistas e xenófobas que, embora desiludindo João, permitem-lhe ter uma melhor compreensão sobre a sociedade para que nesta consiga intervir. “Enquanto não houver uma maior abertura por parte da comunidade para integrar essas pessoas, estamos a promover a exclusão social”. Assim, a história de João é a de um aveirense que quer dar protagonismo a todas as pessoas que, de algum modo, sofrem discriminação, tendo sempre plena consciência de que “não é através de um clique que as coisas mudam. É um trabalho de continuidade”.

João afirma não ser um herói, “parece-me um pouco exagerado”. Mas os heróis não usam capas nem têm superpoderes, são pessoas que na sua humildade nem se apercebem que para todos aqueles a quem dão a mão, não têm outro nome senão esse.

Ondina Pereira

Enfermeira

Centro Hospitalar do Baixo Vouga

Um coração que bate sem preconceitos

Quando questionada sobre o que é um herói, Ondina enaltece os “heróis das coisas pequenas”. Se cada um fizer a sua parte, se cumprir com excelência a sua missão, então “cada um é um pequeno herói naquilo que faz”.

Enfermeira há 25 anos, Ondina Pereira trabalha no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental (DPSM) do Centro Hospitalar do Baixo Vouga. Apesar de ter estado alguns anos no serviço de ortopedia, há 10 anos que integra a Unidade de Intervenção Comunitária, um dos serviços do DPSM. Aqui faz parte de uma equipa multidisciplinar que realiza visitas domiciliárias e presta apoio a utentes referenciados pela Unidade Hospitalar. “É um cuidado de proximidade”, refere sobre o seu trabalho, onde faz o acompanhamento e reabilitação de doentes mentais, visando a sua autonomia e integração na comunidade.

Queria fazer algo que me permitisse estar perto das pessoas” explica sobre o que a levou a escolher enfermagem. O gosto por esta profissão fez com que nunca se tenha arrependido ou duvidado da carreira que escolheu e afirma ser “enfermeira por vocação, na psiquiatria por paixão”. Contudo, não é apenas o interesse por esta área que faz de Ondina uma boa profissional, mas também o facto de valorizar cada utente como uma pessoa individual que vai para além do rótulo da doença que enfrenta. “O cuidado de tratar os outros como pessoas, independentemente de terem uma doença mental, seja ela qual for” é o mais importante para a enfermeira. Neste ponto, denuncia o estigma ainda existente na sociedade perante os doentes mentais e psiquiátricos, reforçando a necessidade da sua desmistificação. Defende que todos “vivemos numa balança entre a saúde e a doença mental”, e apesar de “encontrarmos mecanismos de defesa”, todos podem ter os seus momentos de desequilíbrio, pois “a doença mental é de todos”.

O cuidado de tratar
os outros como pessoas,
independentemente de
terem uma doença mental,
seja ela qual for

Por trabalhar e viver em Aveiro, é natural deparar-se com alguns destes antigos utentes na rua, depois de regressarem à vida em comunidade. É nestes encontros ocasionais e despropositados que, por vezes, se depara com utentes que se encontram instáveis. É sua responsabilidade sinalizá-los e encaminhá-los novamente para os serviços de psiquiatria. “Às vezes, a nossa missão como enfermeiros ultrapassa as paredes do hospital”.

Outra ideia que pretende desmontar é a imagem de uma “psiquiatria agressiva” com utentes violentos. Afirma que “a nossa maior arma é a comunicação”, realçando a importância de tratar com dignidade cada utente, de lhes prestar atenção, de os compreender e, com isso, acalmá-los. Para o conseguir fazer, não se deixa influenciar pela opinião que outros têm sobre os seus pacientes, independentemente de os considerarem violentos ou agressivos. “Somos nós que estamos ali naquele momento, não são os outros, somos nós”.

Rui Figueiredo

Agente Principal

Polícia de Segurança Pública

A serenidade de uma luz de presença

Para Rui Figueiredo, “um herói é alguém que faz um serviço para o qual não lhe pagam. Que cumpre a sua missão porque tem amor à causa”. Fazendo o seu trabalho por gosto, Rui certamente já ganhou o título de “Herói” para muitos daqueles que o encontraram pelo caminho.

Rui Figueiredo é polícia desde 1998. Iniciou a sua carreira em Lisboa, tendo sido depois transferido para Espinho, onde começou o percurso pelo qual se iria diferenciar. Aqui, fazia o acompanhamento de idosos, trabalho que continuou quando se mudou para a esquadra de Aveiro. Quando iniciou a sua função, os números de acompanhamento eram escassos, com apenas 4 casos sinalizados. Atualmente, o grupo aumentou para 90, o que demonstra o impacto que Rui teve.

Com uma apetência e um talento natural para ajudar o próximo, Rui lida também com vítimas de violência doméstica. Dada a fragilidade dos grupos de atuação, a preparação emocional é de extrema importância. Rui confidencia: “Tenho que ter bastante controlo emocional. Nunca sabemos como vai ser o nosso dia.” O papel de um polícia é o de tentar amenizar as situações, “em casos de violência doméstica somos como que o controlo do agressor e a salvação da vítima”.

Todos aqueles que
salvam a vida de alguém,
vão ser sempre um herói
para aquela pessoa

Após 22 anos de serviço com grupos de saúde mental delicada, Rui deparou-se com inúmeras situações que o marcaram. No entanto, destaca um episódio de uma criança vítima de violência doméstica: “A menina vivia com a mãe numa casa sem condições. Dada a situação de emergência, a criança foi retirada e encaminhada para a esquadra.” Dali a criança sairia para uma instituição. Contudo, a mãe advertiu a menina de que a assistente social a levaria para um lugar horrendo. Perante o medo que a menina sentia, Rui explica, “fiquei com ela até que o transporte chegasse”. Rui teve que se ausentar por momentos, mas ela recusou-se a ir embora sem se despedir dele. “Fez-me um desenho, que ainda hoje guardo. Abraçou-se a mim quando se foi embora. Fui para casa o caminho todo a pensar nisso.

Apesar de nem sempre ser fácil e de muitas destas ocorrências acabarem por ficar consigo, Rui Figueiredo não trocaria o seu trabalho. Quer seja zelar pelos outros, encontrar um idoso que a família não sabe o paradeiro ou apoiar vítimas de violência doméstica, “o nosso trabalho é estar presente e intervir”.

Micaela Oliveira

Médica de Família

Extensão de Saúde de Oiã

O peso de um ombro amigo

No meio de uma crise pandémica, “médico” e “herói” são termos quase sinónimos. Apesar de concordar, Micaela Oliveira, médica de família, defende que “não é preciso ser médico para se ser um herói”. Para si, um herói é “alguém que consegue fazer a diferença na vida dos outros. Pessoas que, com gestos maiores ou menores, conseguem melhorar o dia de alguém”. Acredita que qualquer um pode ser um herói, “quer na sua profissão, quer com o vizinho do lado”, o importante é “perceber que alguém está a precisar de nós” e ajudar.

Com o seu dia a dia “virado do avesso”, Micaela refere as mudanças sentidas no trabalho, despoletadas pela pandemia. “Para além das consultas presenciais, temos também as consultas por telefone e email”. É ainda da sua responsabilidade o acompanhamento telefónico de doentes COVID-19, tanto confirmados como suspeitos. “O trabalho aumentou para o dobro”, explica a médica. A situação atual trouxe ainda outras mudanças no seu quotidiano a um nível mais emocional. Não acredita que “o trabalho acaba na porta do centro de saúde”, por isso, inevitavelmente, as emoções de um dia de trabalho permanecem no seu pensamento. Afirma que agora é mais difícil, “estamos continuamente em risco. Venho para casa a pensar: será que eu estou a contaminar a minha família?”.

Micaela refere existir ainda alguma disparidade de opiniões no que diz respeito ao trabalho dos médicos de família, nomeadamente no reconhecimento da importância desta especialidade. “Quem tem uma boa relação com o seu médico de família, reconhece a importância do nosso trabalho, mas infelizmente há ainda a perspetiva de que só os médicos do hospital é que resolvem os problemas”.

Temos de tudo, pais que quando
o filho nasce nos mandam fotografias
a dizer que correu tudo bem,
e filhos a lamentar
“infelizmente o meu pai acabou de falecer”

Sobre o que a levou a escolher a sua especialidade, revela que procurava algo “generalista e abrangente”, no qual tivesse a oportunidade de contactar com crianças. Mas refere que a escolheu principalmente pelo facto de poder interagir com diferentes gerações de uma família e acompanhar a sua construção e crescimento. No entanto, existe ainda o outro lado, o dos idosos que começam a estar sozinhos. “Temos de tudo, pais que quando o filho nasce nos mandam fotografias a dizer que correu tudo bem, e filhos a lamentar “infelizmente o meu pai acabou de falecer”. É um trabalho de extremos”, conclui.

Apesar de acompanhar várias famílias, Micaela confidencia “não guardo uma família em especial, vou guardando histórias”.

Centro Social Paroquial da Vera Cruz

Resiliência calma mas constante

O Centro Social Paroquial da Vera Cruz (1971) é mais conhecida pela comunidade pelo seu trabalho com crianças e idosos, no entanto, na verdade, esta instituição tem vários serviços e projetos nas mais diversas áreas. A título de exemplo, o projeto “Alternativas”, na área de intervenção social para jovens com vulnerabilidades e que tem por objetivo sensibilizar e trabalhar com eles na prevenção de comportamentos aditivos. Também como exemplo, temos o CLAIM que oferece ajuda a migrantes.

A solidariedade deveria ser algo natural. Uma responsabilidade básica dado que vivemos em sociedade.

Na opinião da Dra. Paula Hipolito do CSPVC, a pandemia trouxe à luz algumas realidades cruéis e vulnerabilidades de que a maioria das pessoas nem estavam conscientes. Num lado positivo, também despertou a necessidade de ajudar os outros.

Na CSP Vera Cruz aceitam-se bens como ajuda, mas também voluntários. A primeira condição é fazê-lo de forma consciente e respeitar as famílias e beneficiários em geral.

Quando se trata de solidariedade em geral em Aveiro, a Dra. Paula Hipolito chama a atenção para o facto de haver falta de melhores e mais eficazes respostas em algumas áreas, como por exemplo no que toca os idosos e a saúde mental. Manifestou preocupação acerca das condições em que muitos idosos vivem em Aveiro. Outra área que carece de serviços é a saúde mental, explicou a Dra. Paula dizendo que “por vezes, só o encontrar um emprego para alguém não é a solução.”, sublinhando que se uma pessoa não está apta para o executar devidamente e não for funcional na sociedade, é necessário um outro tipo de apoio.

Quando questionada acerca das áreas e tópicos que são menos explorados na nossa região e quais aqueles que são mais difíceis de serem aceites e de sensibilizar a população para, a Dra. Paula diz que na sua opinião é tudo o que seja relativo às comunidades ciganas, porque ainda existe muito preconceito em relação a esta comunidade.

Devo ter uma confiança excessiva acerca de resolver problemas sociais. Considero que resolver um problema não é de todo difícil, é apenas uma questão de prioridades.

Acerca da cooperação entre organizações em Aveiro, a Dra. Paula Hipolito sente que é fácil comunicar com outras organizações mas sublinha que “uma rede social de contactos mais dinâmica e coesa seria uma ajuda”.

Os serviços da CSP Vera Cruz são gratuitos, com exceção do Jardim de Infância. Este os pais pagam consoante as suas possibilidades salariais.

Algumas das áreas que necessitam de ser mais trabalhadas são as dependências, em especial, na sua opinião, a dependência digital e em paralelo a necessidade de educação para a literacia digital.

Por fim, a Dra. Paula deixa-nos com um comentário acerca de como pensa que uma resposta social pode ser eficaz:

Tem de se prolongar no tempo, e não ser baseada em ações pontuais, deveria ser vista como trabalho em progresso em todos os aspetos relativos a um ser humano. Por vezes, pessoas que trabalham no sector social ficam cansadas e isso não pode ser uma opção. É uma jornada em busca de resiliência e humildade, acreditar que nas pessoas e encará-las como pessoas e não o problema que representam. A melhor coisa que pode acontecer a alguém que trabalha em intervenção social é quando o seu trabalho não mais é necessário, já que isso significa que as pessoas adquiriram as ferramentas para estar em harmonia consigo mesmas e com o mundo exterior.

AMA - AMigos do Abrigo Quintã do Loureiro

Um grupo de voluntários entusiastas que têm vindo a ajudar
os nossos amigos de quatro patas que foram abandonados ou perdidos

Há muito a dizer sobre a AMA - Amigos do Abrigo Quinta do Loureiro, são um grupo de voluntários entusiastas que têm vindo a ajudar os nossos amigos de quatro patas que foram abandonados ou perdidos.

Todo o abrigo foi construído através de trabalho voluntário e os cuidados dos patudos são também assegurados através de voluntariado puro, tendo como recompensa o bem-estar dos cerca de 80 patudos. Na AMA contam com os donativos de quem quer ajudar e de recolhas em supermercados, por exemplo. Todos os dias o espaço dos animais é limpo, a água renovada e a ração reposta. Contam com muitos miminhos e, sempre que possível, com passeios. Tem sido feito um ótimo trabalho, mas há sempre espaço para melhorar.

A AMA admite que o seu objetivo é que "todos os patudos encontrem um lar e uma família que lhes dê todo o conforto que merecem porque sem adoções, o espaço mantém-se lotado, tentando dar sempre a melhor qualidade de vida aos que se encontram no abrigo”.

Existem várias formas de ajudar, como tornando-se voluntário, através do apadrinhamento de um patudo (8€/mês ou 1 saco de ração/mês), tornando-se sócio (12€/mês), vindo visitar o abrigo e passear os patudos e, claro, adotando ou tornando-se família de acolhimento temporário. Também dá para ajudar em recolhas de alimentos em supermercados ou eventos, como, por exemplo, o mercadinho de Natal ou Feira de Março.

“Somos voluntários de diversas faixas etárias, vivências e profissões diferentes. No abrigo, tentamos criar um ambiente o mais familiar possível, proporcionando aos animais um espaço acolhedor, muitos mimos, passeios agradáveis e banhos periódicos. Garantimos a medicação e idas ao veterinário a todos os que necessitam. Acompanhamos sempre todas as adoções, garatindo que se trata de uma ação ponderada, responsável e para a vida toda.” - explicam os voluntários.

Nada explica melhor o espírito deste local que o texto que uma das suas voluntárias, a Leonor Afonso, escreveu: O AMA é o melhor lugar onde se pode estar. Eu fico muito feliz por saber que estou a ajudar cães que precisam de ajuda. Eles são mesmo muito fofos. Adoro dar festinhas e fico mais feliz do que o Caramelo na hora do patê. Acreditem em mim, ele é louco por patê. Os voluntários são simpáticos e eu divirto-me muito. Estou sempre a pensar nos cães do abrigo e gosto de saber sempre o que se passa com eles. Uma das minhas partes favoritas são os passeios; levo sempre o mesmo cão, o Barbas. Ele é o meu cão favorito do abrigo e gostava de o poder adotar um dia. É um menino lindo e meigo, como todos os outros, é muito fofo e alegre. O seu melhor amigo é o Messi e também está à espera de um lar. As coisas mais lindas do mundo precisam de ajuda. Todos podemos ajudar. Há sempre um abrigo perto de nós a precisar de ajuda. Ser voluntário é o melhor do mundo.

A AMA não tem morada, é em Quintã do Loureiro, Aveiro (coordenadas de GPS: 40.667661, -8.587619).

Associação BioLiving

A natureza é de todos e para todos

A BioLiving é uma associação sem fins lucrativos, alicerçada no lema “Natureza e Educação para Todos”. Tem como objetivos principais:

  • Promover a sustentabilidade;
  • Incentivar a cidadania ambiental e a participação pública na defesa dos valores naturais;
  • Dinamizar a economia social;
  • Promover a inclusão, a paz e a solidariedade, utilizando como mote a educação, os recursos naturais e a proteção da natureza;
  • Disponibilizar acompanhamento nas áreas da floresta, biodiversidade e educação ambiental.

Mas essencialmente demonstrar que a natureza é de todos e para todos.

Apesar das ações práticas de conservação da natureza e restauro de habitats serem uma componente fulcral do trabalho da BioLiving, eles acreditam que é necessário educar e formar as comunidades para a sustentabilidade e cidadania, tanto através de momentos de aprendizagem não-formal, como através de ações de formação técnico-científica no domínio da proteção da natureza e biodiversidade.

Falámos com a Sofia Jervis da BioLiving, que nos explicou que os principais desafios com que a associação se depara estão ligados a em Portugal ser muito difícil para uma organização sobreviver porque os apoios disponíveis são muito limitados, e o ambientalismo em Portugal ainda não é considerado uma prioridade.

A comunidade local pode envolver-se e ajudar a BioLiving na sua missão de diversas formas:

Para além de haver voluntários em campo, também precisam de voluntários para eventos, no que toca a trabalho administrativo e design. São tarefas que são maioritariamente feitas por voluntários que passem mais tempo connosco - têm diferentes tipos de responsabilidades. É, igualmente, difícil garantir recursos humanos para atividades de marketing e estas são importantes. Não chega apenas ter um website, temos de mantê-lo e para tal necessitamos de apoio de alguém das tecnologias da informação.

Os interessados podem contactar a BioLiving via email, Instagram ou Facebook. Devem enviar o CV, indicando em que área podem ajudar.

A Sofia deixa-nos uma mensagem final para a nossa comunidade local e, quem sabe, futuros voluntários:

Saiam do vosso sofá e façam algo. Ser um cidadão ativo e envolvido, fazer parte de associações e fazer outro tipo de atividades, que não estudar e lazer, é importante. Temos de nos envolver, ser parte de algo, tentar, escolher uma associação ambiental ou social, trabalhar com crianças, com idosos, o que seja, mas estar envolvido e conhecer o mundo através destas experiências faz uma grande diferença!

Centro Social e Paroquial de Angeja

A contribuir para o bem-estar

O Centro Social e Paroquial de Angeja tem como missão contribuir para o bem-estar dos seus clientes, através de um conjunto de serviços prestados com qualidade. Promover o desenvolvimento social, através de uma intervenção focada nos problemas sociais do concelho, apoiando a comunidade/públicos vulneráveis, reduzindo desigualdades.

A Instituição tem respostas sociais, nomeadamente, Serviço de Apoio Domiciliário, Centro de Dia e Centro de Convívio, dirigidas à pessoa idosa com vulnerabilidades diversas condicionantes do seu bem-estar, qualidade de vida e autonomia. A este nível, presta apoio às atividades de vida diária dos clientes, nomeadamente, alimentação, higiene pessoal e habitacional, cuidados de imagem e tratamento de roupa. Dinamiza atividades lúdico-recreativas e socioculturais. Apoia 70 pessoas e suas famílias.

Na área da infância, promove condições para um desenvolvimento integral e harmonioso, através do Centro de Atividades de Tempos Livres, com 20 crianças, no qual desenvolve atividades lúdico-pedagógicas e apoio ao estudo. Procura promover mudança social, apoiando as crianças e jovens das comunidades ciganas do Concelho, fomentando a sua inclusão social e diminuindo desigualdades sociais.

A Filipa Almeida, do CSP Angeja, falou-nos principalmente do projeto Olá Ritmos desta instituição. Atualmente, têm cerca de 270 participantes, entre os quais, cerca de 63 participantes diretos e 204 indiretos. Como participantes diretos entendem-se o público prioritário do projeto, nomeadamente, as crianças e jovens de etnia cigana. Os participantes indiretos são os familiares e a comunidade em geral.

Consideramos que todas as atividades, em determinado momento, tiveram algum impacto para os nossos participantes. Neste sentido, destacamos o desenvolvimento de competências pessoais e sociais, a partir do Ateliê Lúdico-pedagógicos; o apoio às famílias, a partir da Intervenção Familiar; o apoio ao estudo; o desenvolvimento de competências digitais, onde se engloba, o Ateliê de Informática, o Curso de Iniciação às TIC e a Oficina Audiovisual e Fotografia; o diálogo intercultural, a troca de saberes e experiências entre ambas as comunidades (majoritária e minoritária), destacando aqui a Oficina de Saberes; a importância da diversidade cultural, recorrendo à música e à dança, a partir da Oficina de Música e Dança; e, por fim, a sensibilização sobre os direitos e deveres de cidadania fomentando a inclusão social e a motivação para a participação social, onde se destaca as Ações de Sensibilização para a Participação e Cidadania. Para além das presentes atividades, o plano de atividades de projeto também assenta em outras atividades, nomeadamente, o Clube “Olá_Ritmos”, as Oficinas de Trabalho com Agentes Educativos, a Rádio Escolar e a Associação de Estudantes.

A principal necessidade sentida é a falta de recursos humanos, tendo em conta que têm um elevado número de participantes e também diversas atividades afetas ao projeto para desenvolver. Além disso, a falta de recursos materiais, nomeadamente, a nível dos transportes também é uma das dificuldades sentidas. Esta necessidade deve-se ao facto de intervirmos numa grande área do concelho de Albergaria-a-Velha, na medida em que os participantes vivem espalhados por várias freguesias, com uma distância significativa entre estas. Contudo, de modo a combater esta dificuldade há um reforço do apoio da entidade promotora e Gestora, o Centro Social Paroquial de Angeja.

A divulgação do nosso projeto é de facto mais uma das dificuldades sentidas pela equipa, o que se deve às características do público com o qual intervêm, pois ainda são muito colocados à margem pela sociedade em geral. De modo a combater esta dificuldade, dão ênfase a atividades que promovam o diálogo intercultural e a partilha de saberes e experiências entre ambas as comunidades, maioritária e minoritária.

Se tivéssemos que resumir o que é trabalhar neste projeto em poucas palavras, sem dúvida que seriam dedicação, adaptação, aprendizagem e versatilidade. O dinamismo, a aprendizagem contínua com os nossos participantes e a dedicação, afeto, apego e cuidado que sentimos por estes, são palavras-chave que caracterizam o nosso dia-a-dia. Podemos mesmo afirmar que nunca um dia é igual ao outro e que somos constantemente colocados à prova. O diálogo intercultural, a desconstrução de mitos associados às minorias étnicas, o sucesso escolar, o combate do absentismo e a inclusão social são os pontos principais do nosso projeto. Deste modo, a participação ativa da comunidade em geral é um dos pontos a melhorar em futuros projetos.

CSP Angeja aceita voluntários. Qualquer pessoa pode candidatar-se a voluntária. Para isso basta entrar em contacto através do email da instituição.

Mon Na Mon

Solidariedade e multiculturalismo de mãos dadas

A Associação Mon Na Mon é uma associação de filhos e amigos da Guiné-Bissau que se constitui como uma organização laica, de carácter humanitário, sem fins lucrativos e de ajuda mútua. “Mon na mon” em creoulo significa algo como “de mãos dadas”.

Os principais objetivos da associação são a criação de espaços de encontro multicultural, promover a interculturalidade, criar conexões entre pessoas e uma imagem positiva relativamente aos imigrantes, mas também oferecer apoio àqueles que precisem - seja na escola, na universidade ou na vida em geral.

A associação dá casa a um grupo cultural que promove danças tradicionais da Guiné Bissau, assim como de outros países africanos.

Há, também, um espaço de estudo, no qual voluntários oferecem ajuda, uma vez por semana, com os trabalhos de casa, sendo que o objetivo é ter mais voluntários e mais horas dedicadas a este apoio.

“Este apoio é importante, visto que uma das principais barreiras na escola para os jovens que falam crioulo é a língua portuguesa. Muitas vezes não são bem sucedidos na escola dado este fator, ainda que o crioulo possa ser parecido com português em certa medida.” - explicaram-nos os intervenientes da Mon Na Mon, sublinhando que deveriam haver mais oportunidades para trocas culturais em Aveiro, já que isto poderia suscitar o interesse dos locais pela música, gastronomia e costumes africanos.

Espera-se que novos projetos surjam em breve na Mon a Mon. Estão à procura de parcerias de trabalho, mas também a receber voluntários, de forma que possam proporcionar mais e melhores serviços para quem necessite. Entretanto, continuam a trabalhar naquilo em que acreditam: encontros interculturais e solidariedade.

Se gostarias de te juntar à Mon Na Mon, por favor contacta-os via email.

Florinhas do Vouga

Um símbolo de solidariedade em Aveiro

“Florinhas do Vouga” é certamente o símbolo de solidariedade em Aveiro. Esta instituição foi fundada em 1940 pelo Bispo D. João Evangelista de Lima Vidal. 80 anos mais tarde, é a IPSS mais conhecida na nossa cidade, oferecendo diferentes respostas aos mais variados problemas sociais. Hoje, contam com 75 trabalhadores e a ajuda de 110 voluntários

Esta instituição atua, principalmente, na Freguesia da Glória, onde se situa um dos mais problemáticos bairros sociais da cidade (Bairro de Santiago), ainda que, sempre que necessário, também dêem resposta a pedidos de freguesias vizinhas e subúrbios da cidade. Trabalham com crianças e juventude, população envelhecida, famílias e comunidade, assim como problemas de vício em drogas.

Em conversa com a Andreia Ruela, das Florinhas do Vouga, ela falou-nos um pouco da visão recente do impacto da instituição na comunidade local:

Sentiu-se a ausência prolongada do nosso serviço percebeu-se o real impacto de existir aquela rotina, a falta das atividades de estimulação da motricidade e cognitiva; as famílias nem sempre têm capacidade de suporte, perdem autonomia, lidar com esta dependência também desgasta emocionalmente. A pandemia trouxe uma nova realidade a que as famílias não estavam habituadas.

A existência de famílias numerosas com diversos problemas e sem salário, que dependem de apoios sociais e são em geral famílias em situação vulnerável, levou a que a instituição atuasse como mediador com o Programa Comunitário, de forma a ajudar aqueles que precisam e procurar sinergias para que se possa otimizar os recursos existentes e responder a emergências sociais.

Alguns exemplos deste programa são o projeto “Mercearia e Companhia” que dá apoio a cerca de 200 famílias por mês, com alimentação, roupas e outros itens, e a ação “Ceia Quente”, que distribui diariamente alimentos aos sem-abrigo de Aveiro.

Um outro desafio que enfrentam trata-se da saúde mental da comunidade. Não sabem por vezes para onde encaminhar, ainda que tenham uma parceria com uma neuropsicóloga, sentem falta de mais respostas e veem pessoas cada vez mais novas a precisar desta ajuda; começam a aparecer distúrbios como bipolaridade, depressão, ansiedade, e não sabem para onde encaminhar, “às vezes não há a resposta adequada, não se consegue dar a resposta adequada”.

Ainda outra preocupação das florinhas e desejo é trabalhar a questão da alimentação, sentem que ainda não estão a trabalhar nesta área como gostariam. Muitas famílias aparecem com distúrbios alimentares como obesidade, anorexia, que se fala da fome mas não se fala da pobreza nutricional.

O problema é que os cabazes que fornecem não são tão nutritivos como gostariam de dar às famílias; as famílias muitas vezes têm baixos rendimentos financeiros e o que recebem é graças à União Europeia e Banco Alimentar, mas são coisas congeladas e enlatadas. “É útil porque logisticamente temos de preparar todos os dias muitas refeições mas há o desejo de nos associarmos a produtores locais, estamos a descurar o lado ambiental e económico. É um caminho difícil e uma gestão difícil porque precisamos de arranjar a parte logística para acomodar os produtos que chegam e também trabalhamos na incerteza do que os produtores possam ter.”

No que toca à colaboração com diferentes associações locais, as Florinhas do Vouga estão sempre abertas a isso. Andreia Ruela diz que é importante identificar necessidades que são transversais às diversas associações locais e partilhar recursos entre estas.

Em relação às atividades com outras associações, também reparamos sempre no impacto, fica marcado, fica com as crianças, fica com os utentes. Nem que sejam pontuais, as atividades que tivemos feito com outras associações são sempre desafiantes e é importante a nossa instituição também se sentir desafiada e abrir portas a colaborações. Fizemos com a bio living a sementeira de bolotas com as crianças e são sempre atividades muito positivas, também fizemos pegadas de animais selvagens em gesso... Por exemplo os origamis feitos com a Agora Aveiro foram bons, porque produzimos origamis aqui e foi uma ação pontual que, no entanto, depois se reproduziu e se fez várias vezes, juntámos nessa atividade crianças, idosos, mobilizamos grupos diferentes, valências diferentes. Há partilha de recursos materiais, mas também gostávamos de ver partilha de recursos humanos, espaços... As associações necessitam de ser desafiadas neste sentido.

Há muitas coisas na lista do “A fazer” das Florinhas do Vouga, não obstante, há ainda mais coisas a apontar na lista do que já foi feito. Em termos gerais, esta Instituição adotou uma estratégia eficaz, preventiva, de promoção e inclusão da sua população alvo e assim tencionam continuar a lutar por um amanhã melhor para todos.

A Florinhas aceita voluntários e ocasionalmente necessitam de diferentes bens (roupa, produtos de higiene, etc.). Procuram-se voluntários para as diferentes áreas de resposta social, tal como ajuda nas ceias, apoio ao estudo, competências digitais... Fica atento, segue a sua página de Facebook ou entra em contacto via email.

Amélia Neves

Sento-me com Amélia, que me diz não saber o que dizer sobre si. Esta é uma história como tantas outras. Uma história com amor, com viagens, uma história de vida. E porquê contar esta em específico? Porque não contar esta em específico? É essa a questão que vos coloco. Em cada vida se encontra um livro à espera de ser lido, uma nova história para conhecer. E a de Amélia não é exceção.

Amélia está pelo Solar das Camélias há 7 meses, gosta muito de conversar com uma senhora que também por cá anda, diz serem boas confidentes. Desta vez, a companhia para conversa foi diferente, mas foi com gosto que partilhou a sua história comigo.

Nasceu em Angeja, Albergaria a Velha, onde teve “uma infância muito boa”, partilha com um sorriso tímido. Cresceu numa família de 6 irmãos, com quem jogava à “macaca” e ao “botão”. Já adulta, jogava à macaca com os netos e de “pés na terra”, que “a terra faz bem aos pés”, algo que a filha sempre aprovou bastante.

Estudou até à 4ª classe, o que possibilitou que aprendesse a ler. Hoje em dia, conversa muito, lê (gosta muito de ler) e dá os seus passeios para manter as pernas ativas. Uma outra utente emprestou-lhe um livro, “Misericórdia” da Lídia Jorge, e está a gostar muito de o ler. “O meu genro também gosta muito de comprar livros para ler nas férias”, conta-me, e pergunta-lhe que livro gostava de ler. Em casa tem muitos livros e quando lá for quer trazer alguns. Às vezes fogem-lhe as palavras e já não as consegue usar, mas “está tudo bem”, encara isso com naturalidade.

Viveu em casa dos pais até casar. Casou-se com 19 anos, em outubro, “ainda os meus pais tiveram de dar consentimento; naquele tempo era assim…” recorda sorridente. Naquele tempo a vida era um pouco difícil, antes de casarem, só se viam uma vez por ano em agosto. De resto namoravam por cartas. O seu marido, na altura ainda só um amigo, morava na rua dela e quando saíam da escola (que eram separadas, não mistas) ele encostava-se a ela e lá surgiu o primeiro namoro. Namoravam 20 dias pessoalmente por ano, era muito envergonhada mas foram felizes. No entanto, ele teve de ir para Lisboa, onde acabou por ficar noivo de outra rapariga, até que, quando voltou, decidiu que quem realmente queria a seu lado era Amélia, pediu-a em casamento, 61 anos de casados. Com um ar emocionado diz-me: “O meu marido era muito bom”.

Esteve em 42 anos a viver em S. Paulo no Brasil. No princípio chorava muito, depois habituou-se. O marido queria sempre a família junta, mas os filhos estavam por Portugal, o que fez com que acabassem por voltar para a zona de Albergaria. A vida de emigrante era uma vida complicada. Ainda voltaram ao Brasil para correr todos os estados de S.Paulo e passear.

Trabalhou sempre em casa, o marido não queria que trabalhasse. Ainda assim, teve a oportunidade de ajudar numa padaria, perto da qual viviam e onde o marido trabalhava. Em frente à padaria havia uma igreja, na hora de saída da missa havia muita gente e ela ia ajudar. “Sempre fui uma pessoa muito ativa e gostava de trabalhar.” , confessa, “Nunca gostei de mandar, gostei sempre de fazer”. Nos tempos livres, gostava muito de fazer crochet, “Fiz jogos de quarto, colchas de crochet para os meus filhos… Aprendi sozinha, pelas amostras. Uma vez vim para o Brasil e no aeroporto fiz uma colcha para a minha filha às tiras, fiz o resto lá em S.Paulo. Levei uma mala cheia de novelos!“ ri-se ao contar, imaginando como seria se lhe abrissem a mala no aeroporto.

Um dos seus momentos mais felizes foi quando nasceu o filho. Vivia nos anexos da casa de uma senhora italiana que a adotou como filha, acompanhou-a sempre e ajudou a fazer o enxoval para o menino. E depois, outro momento feliz foi, claro, com o nascimento da filha, aos 3 anos e meio do filho. Já o dia mais triste, afirma sem hesitar, foi há 8 anos quando o marido faleceu, vítima de doença, “Para mim acabou a vida”, confessa. Quando o marido tinha de se ausentar, sentia muito a falta dele. No entanto, tem fé de que ele está bem. O marido disse-lhe, certa vez, “oh mulher tu és uma pessoa que é mãe, mulher, enfermeira… onde eu estiver vou sempre cuidar de ti” e Amélia replica esta frase com um brilho nos olhos, acrescentando: “nós amamos o que é nosso e estimamos o que é nosso”.

Tem uma prótese há 24 anos na anca, uma velha amiga que a acompanha, mas não se lastima “foi assim, é assim que está, é assim que fica, pronto!”, diz que não vale a pena queixar-se das suas dores aos outros, quando é preciso vai ao médico e é isso. Caía várias vezes e isso levou a que tivesse de ir para o Solar, dado que vivia sozinha. Ao fim de semana está com os filhos.

Aventuras, também as houve! Risonha conta-me uma situação: quando pôs a prótese na perna, o marido disse ao sobrinho para ir buscar um balde de laranjas ao pomar, mas ele não foi. Então, Amélia decidiu trepar a laranjeira sozinha, sem ninguém saber, ainda não tinha ela recuperado da operação. O marido “ralhou” mas ela sentia-se tão bem! E não aconteceu nada! Não era pessoa para ficar parada, “tinha que arranjar sempre algo para me movimentar. Sentia-me com tanta coragem e vontade de fazer, que fazia!”. Diz que não adianta ter arrependimentos, já está feito paciência!

O bolo favorito é o bolo de arroz, é um bolo seco, que é como gosta. Gosta muito do campo, não é pessoa de praia. Ainda assim, tem um apartamento na Torreira e em julho, quando o marido era vivo, iam para lá. Tomou muitos banhos de mar na Torreira, o marido gostava muito, recorda. No entanto, frisa convicta, que o que ela gosta é de monte, de campo. Tinha galinhas, rolas e pombas (ainda tem na casa dela, aliás), o marido levantava-se de manhã para cuidar delas. Amélia gostava e até era capaz de ajudar na matança das galinhas para alimentação, mas depois deixou de ter coragem para isso, confidencia-me, pensativa.

Perguntei o que gostaria de deixar como mensagem final. Amélia deixa aos jovens o conselho que dá sempre aos seus netos: “ser humilde, saber estar… a educação é o melhor para qualquer pessoa”.

São estas vidas de anónimos que, mesmo não sendo produções de cinema cheias de explosões ou feitos incríveis, nos preenchem. São histórias e vidas das pessoas que nos rodeiam. Das ditas “pessoas comuns”. E afinal… as nossas vidas são preenchidas por quem? Por esses mesmos meros mortais. A minha preencheu-se e expandiu-se, multiplicou ramificações ao conversar com a Dona Amélia. Há que parar, sentar e ouvir. Sugiro que se sentem num banco de jardim e esperem. Quem sabe… talvez venham a ter uma boa conversa com um desconhecido. “Então e o que vai escrever? Eu não falei nada, falei mais de mim”, Amélia dizia-me rindo. Foi Amélia quem deu voz à minha escrita.

Henrique Pereira

Henrique Pereira é um homem que está a viver a sua sétima década. Traz consigo as histórias dos seus amores e das cicatrizes de Castelo de Paiva. Um dos eventos que ecoa sempre em suas lembranças foi o dia em que a ponte caiu, em 2001, um acontecimento que deixou marcas profundas na comunidade.

Henrique fez a sua vida em Santa Maria da Feira. No entanto, não me quis falar muito sobre si, sentia-se mais confortável quando falava da sua amada. Os seus olhos brilhavam com uma luz extra especial e o seu sorriso aumentava, como se ela ainda estivesse presente ao seu lado. Todo o amor e as lembranças da vida passada juntos estão bem vivas no seu coração. Ambos compartilhavam uma paixão pela dança e por jogos. Henrique é um homem namoradeiro, que dá muito valor ao toque físico. Durante a nossa conversa, tivemos tempo para um jogo, em que eu imitava os gestos que o senhor Henrique fazia. Mais uma coisa que lhe fazia relembrar a sua mulher.

O seu conselho para mim foi bastante simples, mas profundo: encontrar um parceiro que me trate com amor, carinho e muito respeito como ele sempre tratou o seu amor, o seu bebé. Ao longo dos 30 minutos que ficamos a falar, Henrique nunca deixou de sorrir e deu muitas gargalhadas, mostrando que, independentemente do que a vida nos traz, devemos sempre encarar tudo com positividade, amor e ter espaço no nosso coração para todos. E nas suas memórias e histórias, a essência do nosso Henrique permanecerá sempre viva, como um tributo ao poder do amor verdadeiro e duradouro.

Irene Cardoso

“A minha história de pequenina até agora é maior do que os romances”, disse Irene.

Deixo aqui alguns trechos deste longo romance. Mas devo dizer que ninguém faz jus a este romance senão a própria voz da D. Irene.

Irene descreve-se como uma sereia, é paraplégica e só mexe as mãos, os seus “ancinhos” como diz. A vida tem sido complicada, um daqueles romances um tanto ou quanto trágicos e que nos prendem a cada página.

A nossa sereia nasceu de parto normal em Ourentã e a infância também foi por lá. Em miúda, passava os dias em tropelias e brincadeiras a picar os bois. Tinha 6 anos e já andava a ajudar nos trabalhos com estes animais, ou a arrelia-los, vá… Irene sorri muito ao contar-me essas histórias de pequenina, não tinha medo, achava engraçada a interação e a adrenalina de fugir. Conta-me acerca de pequenas “asneiras” de criança e pequenas mentiras, e de como corria para fugir aos castigos. Toda a gente dizia que ela era “pior que o Eusébio” a correr para fugir. Escondia-se dos pais às vezes, sorrateira. Não fazia nada por mal.

Recorda um pequeno acidente que teve em miúda enquanto varejava azeitona e caiu de uma oliveira. Ficou a doer-lhe o rabo, confessa, mas não a levaram ao médico. Toda a gente lhe dizia que bastava a mãe fazer-lhe um chá, ou um dos seus caldos com ossos, para ela ficar boa. A sua mãe, Irene recordou saudosa, era uma pessoa simples e sempre a sua curandeira, com solução caseira para os males.

Teve um desgosto grande aos 16 anos, quando o pai morreu. Na altura ainda era travessa, diz ela. Gostava muito de andar nos bailes e dançar com os rapazes. Era namoradeira e “danada por dançar”, ri. Quem comprasse uma prenda tinha direito a escolher uma moça e dançar com ela, e havia um rapaz que queria sempre dançar com ela, sendo que o desejo era mútuo.

Mais tarde conheceu aquele que seria o seu marido. Era músico, tocava bateria, andava de terra em terra. “Fazia música de qualquer maneira!”, recorda Irene alegre. E diz-me tímida, que era mais velha mas “era tão lindo, tão lindo… com o cabelo encaracoladinho… parece que nunca tinha visto rapaz mais lindo na minha vida!”. O carinho que lhe tinha não passou despercebido na nossa conversa. O marido era muito seu amigo e cúmplice, fala com muita ternura de toda a alegria que lhe trazia e de dias bem passados na praia.

A nossa conversa desenrolou-se também para falarmos acerca da matança de porcos e salgadeiras, que alimentava a família durante um ano. Memórias vivas de tradições antigas e não tão longínquas assim.

Mas nem tudo no seu discurso é leve, são “vidas complicadas” desabafa. Tinha muitos animais, faziam criação de gado, era o trabalho. Estalou o pescoço e a espinha aos trinta e poucos anos, devido a um acidente ao subir um escadote. Nunca se deixou parar, ainda assim. Só a sua cabeça é que viaja, recordando sempre o passado. Sonha que trabalha, que anda a limpar o curral de bois… Faz por ser animada, apesar de também ter os seus dias maus. Mas não foi isso que me mostrou.

Aos jovens aconselha-os a viver sempre uma vida feliz, não ligar ao que os outros dizem, seguir sempre as suas ideias, da melhor maneira. No entanto, relembra o cuidado e prudência do seu marido em contraste com a sua espontaneidade e rebeldia, que por vezes, diz que a afetaram. Por isso deixa o conselho de se pensar um pouco mais antes de fazer as coisas. Hoje é mais prudente, mas ainda afirma dizer as suas “maluqueiras”.

Irene é a pequena Tom Sawyer portuguesa. De certeza que foi nela que Mark Twain se inspirou! Mas este, é outro romance. “Aproveitem o tempo enquanto têm tempo”, é a mensagem com que termina esta história.

Isolete Brandão

A Senhora Maria Isolete Gomes Brandão e a sua história são um exemplo de vida para todos nós, pois foi uma vida vivida com intensidade e propósito.

Isolete Brandão, descreve-se como uma mulher que tem a sua maneira de ser forte, arranja sempre soluções para os problemas, dá a volta por cima e aceita a sociedade como ela é. Nasceu em 1930, cresceu num ambiente cheio de crianças. Foi a primogénita de seis irmãos e a neta mais velha entre quinze netos, testemunhando desde cedo o poder do amor e da união familiar. Contou-me as suas memórias de uma infância muito feliz, onde brincou com as suas bonecas de papelão, saltou à corda e à macaca, embalada pelo riso e pela companhia de uma família numerosa.

Desde tenra idade, Isolete demonstrou curiosidade e sede de conhecimento. Ela aprendeu a ler com apenas cinco anos! Frequentou a escola até a quarta classe, mas a sua vontade de aprender mais, fez com que, aos 44 anos, decidisse continuar a sua educação, completando o sexto ano. E espantem-se porque ela não se ficou por aqui, aos 74 anos, alcançou mais um marco ao concluir o nono ano.

O seu casamento, aos 25 anos, trouxe-lhe vários dos momentos mais felizes da sua vida. O nascimento dos seus quatro filhos, apesar de dois deles infelizmente já falecidos, Isolete tem muito orgulho no que os seus filhos se tornaram e no que alcançaram na vida. Inclusive, a sua memória mais marcante foi quando o filho que sofria de esquizofrenia tirou um curso de inseminação artificial, este momento encheu-a de orgulho e esperança, da vida que o seu filho conseguiria alcançar qualquer coisa a que se propusesse, apesar da sua condição.

Não foi apenas sede por aprender que a nossa amiga Isolete demonstrou desde muito nova. O seu caminho de entrega e vontade de ajudar o próximo começou aos 10 anos, quando queria pedir dinheiro para dar aos pobres. Já na sua vida adulta, fundou uma associação na Rua Júlio Dinis, no Porto, onde dedicava o seu tempo a ajudar 18 pessoas com problemas de saúde mental. A melhor forma que arranjou para aprender mais acerca da doença do filho e como lhe dar o suporte que precisava, porque através da sua associação, Isolete ia a vários congressos acerca do tema, dados pelos irmãos São João de Deus, uma Ordem Hospitaleira de Fátima.

A senhora Isolete teve um AVC que é a principal razão pela qual foi para o lar. A sua família sente-se mais descansada sabendo que ela tem alguém a cuidar dela tão perto o dia todo. Com seus 93 anos de idade, Isolete reside no lar há cinco, onde pode focar-se nos seus hobbies e desfrutar dos momentos de lazer.

O seu cabelo grisalho, penteado e bem arranjado, já esvoaçou por vários sítios do país e do mundo. Isolete é do Porto, da Póvoa de Varzim, já viveu em em Santo Tirso, no Minho, e adora ir a Lisboa. No que diz respeito a sítios mais distantes viajou por Roma, Paris e pelos Açores. A sua parte preferida de todas as viagens era visitar as igrejas e os museus, ambos símbolos de história, uma área que sempre a fascinou bastante.

A senhora Isolete é uma mulher pequenina, mas com muita energia. Gosta muito de festas, de ter a família reunida, de rir, beber, falar, comer e dançar. Adora falar com as pessoas e ouvir as suas histórias, pois, pelas suas próprias palavras, é através das histórias que se conhece o povo. O seu prato preferido é peixe cozido com batata.

Quando lhe pedi um conselho disse-me que tenho de viver a minha vida com rigor e com carinho, de cabeça levantada independentemente do que a vida nos traz. Para aceitar o próximo como ele é, aceitar a sociedade senão ficamos tristes, amargos e rancorosos. Disse para me lembrar que a minha liberdade acaba quando a do outro começa.

A história da nossa Isolete emocionou-me bastante. Trouxe-me recordações da minha avózinha e revi-me na filosofia de vida da senhora Isolete. Relembrarei sempre a nossa conversa e a senhora Isolete Brandão, uma mulher determinada, que sempre seguiu o seu coração e deu o seu ao próximo. Uma mulher resiliente, que sempre procurou educar-se e que sempre viu a idade como um mero número e isso nunca a impediu de fazer nada. É um testemunho da força do espírito humano, da capacidade de superar adversidades e encontrar significado na caminhada da vida. Ela é uma luz brilhante em um mundo muitas vezes escuro, mostrando-nos que, mesmo nas dificuldades, há sempre espaço para o amor, a esperança e a compaixão.

José Maria de Sousa

Nascido em Vila Nova de Gaia em 21 de fevereiro de 1957, José Maria Silva de Sousa vive cada dia com a combinação certa de conformismo e superação, traços distintos que foram adquiridos ao longo de uma vida repleta de desafios e adaptações. O mais novo de quatro irmãos e uma irmã, viu no seu pai, Alcino, um modelo a seguir: um trabalhador incansável tanto nos campos agrícolas como na construção.

Aos 12 anos iniciou a sua trajetória profissional, como padeiro na Agripan, uma fábrica dedicada à panificação, em Vila Nova de Gaia. Trabalhava arduamente no fabrico do pão, todos os dias da meia-noite às sete da manhã. Infelizmente, a sua jornada no mundo do trabalho foi interrompida por episódios de alteração de humor devido à epilepsia. Sem medicação adequada na época, “Zé” Maria teve de se reformar por invalidez aos 28 anos, como consequência de episódios epiléticos recorrentes. Mais tarde, aos 30 anos, José decidiu perpetuar um pouco da sua identidade com duas tatuagens nos braços… Um gesto que revela individualidade e irreverência, características que ainda mantém até ao dia de hoje, orgulhosamente.

Destaca os prazeres simples da vida como as suas atividades favoritas durante a juventude e idade adulta: gosto por passeios, beber um café e ler o jornal. Álcool e paixões nunca o deixaram deslumbrado, o álcool interferia com a medicação e piorava os episódios de epilepsia, e os namoriscos nunca passaram disso mesmo. Nessa altura, era também adepto fervoroso do Benfica e de um clube local em Gaia, apreciava o fado da Amália e do Carlos do Carmo, os sons dos ranchos e as longas conversas que tinha com amigos.

No entanto, quando os seus pais faleceram, teve que se ajustar a uma nova realidade. Com a ajuda de um conhecido, encontrou um novo lar no Solar das Camélias em 2010. Foi neste ambiente acolhedor que finalmente alcançou o sossego e o acompanhamento médico que necessitava, de forma a pôr um fim aos seus ataques epiléticos. Aqui, a sua vida flui tranquilamente, algo que se reflete nas palavras de agradecimento que deixou ao staff do lar, pelo carinho e apoio prestados todos os dias da última década.

Como em qualquer outro aspeto da sua vida, Zé Maria nunca foi de extremos. Hoje, sentado na cadeira de rodas, confessa que desfruta de uma vida com moderação, sem muito prazer e sem muita dor. Passeios pelo pátio sim, desde que sejam curtos. Animais sim, desde que estejam longe. Conversas (como a que estávamos a ter) sim, desde que não passem dos 30 minutos (algo que tentei cumprir ao máximo).

No Solar das Camélias, José tem uma rotina pacífica, apreciando os dias que, nas suas próprias palavras, têm altos e baixos, especialmente no que diz respeito à comida! Sobre os seus companheiros no lar, ele é desinibido ao ponto de admitir que alguns o deixam agitado, sobretudo na hora das refeições. O barulho e a movimentação desorganizada de alguns utentes durante o dia deixam José Maria enervado. No entanto, compartilha o quarto com um utente silencioso, o que para ele, é a cereja no topo do bolo depois de um dia de azáfama.

Teve dificuldade em encontrar o adjetivo que melhor o descreve… Mas eu fi-lo por ele: honesto. Um homem de princípios sólidos, algo que ele atribui aos ensinamentos que os seus pais lhe transmitiram.

A história de José Maria Silva de Sousa relembra-nos de que apesar dos obstáculos que nos são apresentados, a vida pode sempre ser vivida com serenidade. Apesar da ocasional raiva direcionada aos seus colegas do lar, José vê a vida como ela é. Não como foi ou como deveria ter sido. Sem histerias ou desilusões, sem fanfarras e exageros. Só por aí, José Maria já alcançou um nível de paz espiritual que muitos de nós jamais iremos alcançar.

Maria Borda

Maria Borda Gonçalves dos Santos nasceu em Sobreiro (Albergaria à Velha) no dia 2 de setembro de 1950. Cresceu como filha única de pais agricultores. A sua vida teve uma reviravolta quando, aos 20 anos de idade, a família se mudou para Moçambique, em busca de um futuro melhor.

Em Moçambique, Maria e os pais desfrutaram de uma vida próspera. O seu pai operava como marceneiro, a sua mãe desempenhava funções de dona de casa, e Maria casou-se com António (nascido em Moçambique, filho de pais portugueses), que trabalhava no aeroporto local.

Infelizmente, em meados da década de 70, enfrentou a necessidade de deixar para trás a sua casa e grande parte das suas posses. Regressada a Portugal, recomeçou a sua vida em Sobreiro, ao lado do marido que arranjou emprego ao serviço da Escola Secundária de Albergaria-a-Velha. Poucos anos depois do regresso a casa, nasceu Carlos, o seu único filho. Em Sobreiro, Maria dedicava o seu tempo à família e à costura, que reflete como a sua atividade favorita na altura.

Viúva desde 2008, Maria acabou por se mudar para o Solar das Camélias em 2022. Confessa que gosta de estar no lar, que as funcionárias são simpáticas, as cadeiras confortáveis, e a comida… “A comida tem dias”. Nesse momento, ambos demos uma gargalhada. Tal como todos os cozinheiros sabem, o cardápio não pode sempre agradar a todos. Maria tem um problema de visão, o que a levou a desistir de algumas das suas atividades favoritas, como a costura e a pintura.

Quando a questionei sobre os momentos dos quais tem mais saudades, Maria escolheu as férias anuais passadas no Algarve com o marido e filho, quando este era jovem. Hoje em dia, Carlos vive na Suíça com a sua esposa e uma filha de um ano e meio. Não há maior motivo de alegria e orgulho para Maria do que esta menina “linda”, nas suas palavras. “Os nossos são sempre lindos, mas ela é mesmo linda”, reflete. Viu a menina ao vivo no Natal passado, mas o seu filho mostra-lhe fotografias sempre que a vem visitar, algo que faz com regularidade.

A decisão de se mudar para o Solar das Camélias foi motivada pela necessidade de segurança e assistência 24 horas por dia, mas Dona Maria acabou por reaver alegria nas atividades oferecidas pela instituição. Ao fim de semana, o ambiente fica mais monótono, sem a presença das animadoras. No entanto, é ao fim de semana que costuma receber visitas de primos e amigos, algo que a deixa sempre de bom humor. Lamenta apenas não saber utilizar o telemóvel, de forma a manter contacto com quem não a consegue visitar.

Maria descreve-se como uma mulher frágil, no que diz respeito à saúde física. Ao contrário da sua mãe, que faleceu apenas há cerca de 3 anos, e trabalhou ativamente na agricultura até uma idade avançada.

Relembrando com carinho os seus pais e a sua vida em Moçambique, Dona Maria é uma mulher de família que acompanha à distância os seus entes mais queridos. Contudo, no Solar das Camélias, sente que há sempre alguém disponível para a ajudar e fazer companhia, seja de dia ou de noite. Uma mulher de coração puro, Maria personifica a beleza da simplicidade entre palavras e sorrisos. Um exemplo de como a família e o amor podem sustentar-nos, independentemente das circunstâncias da vida.

Maria da Conceição Silva

Maria da Conceição diz que já está no Solar das Camélias há muito tempo, mas como o tempo é relativo, não precisou datas. Diz que gosta de lá estar, “É tudo boa gente!” afirma animada. 93 primaveras feitas, a 17 de maio, o mês mais bonito do ano, diz-me risonha.

Assim que perguntei acerca de onde cresceu a primeira coisa que lhe saltou à mente foi falar da mãe e da tia/madrinha. Cresceu em Felgueiras, terra do bolo rei, das cavacas e do pão de ló, feito só com gema de ovo, claro! As claras, essas, não se desperdiçaram, as pessoas iam buscá-las para fritar e comer. A mãe e a tia queriam que ela aprendesse o ofício de fazer estes doces, para os vender. E assim o foi, aos 10 anos, já ela sabia como fazer o pão de ló, com dúzias de ovos.

A sua professora, D. Júlia, recorda, considerava-a muito inteligente, conta-nos com um brilhozinho de orgulho nos olhos. Fez o exame da 3ª classe e a sua professora queria que Maria da Conceição viesse a ser professora também. Assim, quando se reformasse ficava ela no seu lugar. Mas ela não queria ser isso, antes queria pegar na sachola e ir para o campo.

E assim foi, não quis seguir estudos. Diz que as colegas a invejavam por a professora a admirar tanto e incentivar a sua inteligência. Essa atitude das colegas incomodava-a e pouca importância lhes dava.

Cuidou de crianças, enquanto ama, e gostava muito disso. Fez a comunhão solene e aprendeu a doutrina toda, que ensinou às colegas. Pode não ter sido formalmente professora, mas ao longo da vida, sem dúvida que ensinou muita coisa a muitos.

Casou-se mas nunca teve filhos. Continua a ver a missa todos os dias ao domingo, não falha nunca, diz! Nunca quis parar, reformou-se já tarde.

Com um sorriso maroto, quase pueril, confessa-nos que não gosta de carne, então deixa na beira do prato. O que lhe vale é a sopa, diz a rir. Se for massa e arroz também gosta, agora a carne…

Maria Ermelinda Nunes

A Dona Maria Ermelinda Cardoso Nunes, nascida em 7 de setembro de 1942, é natural do Porto, mais especificamente de Lordelo do Ouro. Completou a 4ª classe, jogava à macaca quando era pequena, tendo começado a trabalhar aos 8 anos de idade. É uma mulher de aço, já que trabalhou nas obras e em várias fábricas, onde fiava e torcia lã, seda, com recurso ao tear . Depois do 25 de abril e já reformada, ainda trabalhou muito nas terras a “fazer a lavoura”. Tinha também animais, alguns porcos e, maioritariamente vacas, chegou a ter 17, às quais, mecanicamente, tirava o leite e vendia. Curiosamente, não gosta nem nunca gostou de leite. Já de flores gosta muito, de plantas em geral e do trabalho que fazia nas terras.

Tinha 5 irmãos, casou-se aos 27 anos e teve 2 rapazes, mas infelizmente um faleceu novo, aos 24 anos, por andar nas “más companhias” e na droga. Também ficou viúva cedo, sendo que o marido bebia muito. Apesar do lado menos bom da vida, tem uma família, o primeiro filho, que lhe deu alguns netos e que decidiram apostar em carreiras promissoras sendo que tem um dos netos como finalista em medicina.

A D. Maria está no lar há cerca de 2 anos depois de ter tido um AVC. Apesar de ter recuperado muito bem, os números de telemóvel é que ficaram esquecidos. Os momentos mais felizes da sua vida foram o nascimento dos seus filhos.

Um conselho que deixa para as gerações futuras: “tenham juízo, a vida é curta”.

Maria Preciosa Dias

A D. Preciosa estava um pouco desconfiada, e sem saber ao certo o que estava aquele grupo de jovens ali a fazer. Depois de nos apresentarmos e explicarmos, lá a conversa se começou a desenrolar.

Preciosa é a memória viva de dias passados como vendedora nos mercados locais. Foi por entre pessoas e campo que cresceu. A sua infância, passou-a com a mãe, e irmãos, passando por Oliveira de Azeméis, Estarreja, Albergaria a Velha, a vender produtos no mercado. Os produtos, esses, eram semeados e colhidos pelas suas mãos e da sua família. Andava sempre de um lado para o outro, e gostava muito dessa dinâmica. Nem sempre havia tempo para brincar no meio de tudo isso. No entanto, ainda assim, havia dias em que brincavam e entretinham-se no campo por entre o trabalho, como qualquer outra criança.

Casou-se aos 17 anos, com um amigo da família. Sorri ao dizer que se davam muito bem e que… uma coisa foi levando à outra. Já depois de casada e com filhos, emigraram para França, à procura de melhores condições de vida. Lá, trabalhou no hotel, onde criou laços com uma patroa de quem gostava muito. Mais do que patroa, Preciosa encontrou uma amiga. Fala dela com um imenso carinho e recorda um bolo esta lhe ofereceu certa vez. Ficou-lhe na memória o gesto e nota-se no olhar de Preciosa que a leva a viajar no tempo.

Confessa que gosta muito de cozinhar, no entanto, a mão direita parece já não ajudar muito hoje em dia. A vida foi difícil, desabafa e fala-me triste de como tudo acaba, com uma saudade na voz que se entrelaça na minha garganta ao ouvir.

Aos jovens, aconselha-os a estudarem, se assim lhes for possível e se assim o desejarem. Recorda com orgulho o afinco do seu filho enquanto aluno e é isso que deseja ver nos jovens. Deixa também uma vontade e esperança de que as pessoas “honestas” possam ter uma vida mais fácil. São estas as palavras ricas de Preciosa que, apressada termina a nossa conversa, pois tem algo de importante para ir fazer. Não me contou o quê, é algo que faz parte do seu mundo… mas deixou-me a sua história para ser partilhada.

Maria Tavares da Silva

Maria Tavares da Silva, uma mulher, com os seus belos 89 anos, cujas belas rugas contam a história de uma vida repleta de simplicidade e amor. Ela mesma descreve sua própria existência como uma “vidinha”, mas por trás dessa modéstia, há uma vida de trabalho árduo e momentos de alegria que merecem ser celebrados.

Desde jovem, Maria dedicou-se ao cuidado do marido e da família, trabalhando nas suas várias hortas, nas quais plantava batata, couve, feijão e milho, para garantir comida na mesa. Tinha ainda animais domésticos, entre eles, coelhos, porcos e ovelhas. A sua generosidade ia além, compartilhando o que colhia com vizinhos, num exemplo vivo de solidariedade.

Apesar das dificuldades, Maria e seu marido alcançaram um conforto modesto com a aquisição de um "carrinho". Ela nunca aprendeu a conduzir, pois o medo sempre a impediu, mas isso não a impediu de enfrentar outros desafios da vida com coragem.

Nascida em Oliveira de Azeméis, Maria teve a sua educação interrompida cedo, estudando só até à quarta classe, mas guarda com carinho as duas lembranças da escola, era muito boa aluna, e lamenta não ter tido a oportunidade de estudar mais devido à rigidez do seu pai. A simples tarefa de escrever o seu próprio nome, que lhe propus, trazia-lhe uma mistura de nostalgia e orgulho, apesar da sua visão já enfraquecida.

A partida do irmão para o Brasil, quando este completou 16 anos, deixou uma lacuna na sua vida, perdendo o contato ao longo dos anos. Mas foi ao lado do marido que Maria construiu a sua felicidade, casando-se aos 18 anos e sempre partilharam um respeito mútuo, até que a morte repentina dele há duas décadas a deixou desamparada.

O nascimento do seu filho, Carlos Alberto, quando tinha 26 anos, foi uma bênção que encheu a sua vida de alegria, recorda-se como o momento mais feliz da sua vida. Hoje, ela é uma mãe e avó orgulhosa, ansiando pelas visitas do filho e pelas férias de verão para poder abraçar as suas netas, Leonor e Júlia, com 7 e 3 anos, que vivem distantes.

O seu cabelo grisalho, penteado e bem arranjado, com uma risca para o lado já esvoaçou pelos ares da Alemanha. Foi a primeira vez que andou de avião, após ter ficado viúva, e tem poucas, mas boas recordações dessa viagem. O edifício que mais gostou foi o banco Deutsche Bundesbank, o banco central da República Federal da Alemanha que faz pate do Sistema Europeu de Bancos Centris. Lembra-se de, na altura que lá foi, haviam muitos poucos carros na rua e gostou particularmente desse facto.

Vaidosa e simples ao mesmo tempo, Maria sempre bem apresentada, nunca dispensou de um relógio no pulso. Desde que se mudou para o lar das Camélias em junho de 2023, sente-se aprisionada numa rotina monótona, especialmente agora que luta contra cancro no estômago, que a impede de desfrutar dos prazeres simples da alimentação. Nos dias mais difíceis, sente-se perdida, que a sua vida está sem sentido e que apenas está a sobreviver neste mundo.

Quando pedi um conselho de vida, Maria, com sua sabedoria singela, alertou-me para ser cautelosa nas escolhas e desejou-me sorte. Uma mulher cética, que me dis para ter cuidade com a ilusão da vida. Realista, ela entende que a vida está aqui e agora, e devemos aproveitar cada momento ao lado daqueles que amamos.

A história de Maria é um relembrar poderoso de que a verdadeira riqueza reside na simplicidade, na generosidade e no amor compartilhado com os outros.

Natália Novo

Natália tem 87 anos, parte deles foram vividos em Angola, onde nasceu, tendo, mais tarde, vindo para Portugal. Ela nasceu no dia de Natal, em casa, e tem apenas um irmão mais velho, pois a sua irmã morreu de bronquite aos 6 anos, quando a Natália tinha 2 anos.

Admitiu ter um carinho especial por Portugal e particularmente pela cidade de Aveiro. Na altura, os meios de transporte não eram muito acessíveis e seguros, por isso as viagens de ida e volta não eram tão frequentes e acabava por ficar longas temporadas em casa dos tios, que viviam no Alboi, Aveiro. Ainda assim fez a primeira visita a Portugal com apenas 2 anos e terá regressado aos 8 anos, para frequentar a escola primária e comercial.

A sua mãe colocou-a num colégio de freiras em Angola até aos 18 anos, onde tinha pouca liberdade. Posteriormente, acabou por tirar o curso de formação feminina num colégio em Catumbela, que lhe permitiu dar aulas.

Recorda-se com nostalgia do passado, nomeadamente quando voltou a Portugal com as suas amigas, no período de férias do colégio, já com 18 anos. Curiosamente, foi nesta viagem que conheceu o seu namorado e futuro marido, afirmando ter sido “amor à primeira vista”.

Este amor cresceu ao longo dos anos, mesmo que à distância. Durante dois anos, ele foi para a tropa em Vendas Novas, mas escrevia-lhe todos os dias. No entanto, houve muitos enredos com o namorado de Natália, revelando-se muito mulherengo. Tanto que, numa viagem que ele fez com antigos colegas, arranjou outra namorada de Braga, da qual guardava uma foto na carteira, o que desencadeou mais tarde uma história de novela e um grande confronto na noite do casamento.

Por sua vez, também Natália era muito admirada pelos rapazes e recebia, inclusive, múltiplas cartas de amor, as quais negava consecutivamente por já estar comprometida. Após 2 anos de namoro, começaram a pensar em ir para Angola. Ele escreveu uma carta aos pais de Natália a pedir o consentimento para casarem, quando soube que ela ia voltar para a terra natal, ao qual eles acederam, pois também ele provinha de boas famílias.

A verdade é que quando esta namorada soube que ele ia casar, ela foi confrontá-lo e encontraram-se no Hotel Imperial, mas ele daqui saiu com a sua noiva, a Natália, que tinha uma boa família. Casaram em Aveiro, na igreja de Santo António. Por sua vez, a boda foi no Hotel Imperial, tendo sido celebrado no Hotel História em Coimbra e passados dois meses foram para Lisboa com o intuito de embarcar para Luanda.

Os tios de Natália prometeram arranjar trabalho para o marido, no entanto, foram surpreendidos à chegada com o contrário, tendo, por isso, ido para a terra natal, Catumbela, a pedido do seu pai, que arranjou logo trabalho ao genro como escriturário. Por sua vez, Natália permaneceu como dona de casa com os seus afazeres domésticos, enquanto dava aulas a crianças lá em casa, como uma forma de ocupar os seus tempos livres. Além disso, ela própria fez todo o seu enxoval, dando azos ao seu gosto por bordar, por isso usou o dinheiro mensal que recebia dos pais para comprar os tecidos. De seguida, aprendeu a usar a máquina, com a qual fez uma almofada bordada em cetim e ainda se arriscou na pintura à pena. Posteriormente, tirou uma formação, cuja ideia terá resultado de um livro de receitas que lá tinha em casa e começou a fazer bolos grandes e saborosos, para grandes eventos como casamentos e batizados.

Passaram confortavelmente 15 anos sem vir a Portugal e, entretanto, nasceu o seu filho que foi para Portugal, devido a um problema de saúde, tendo permanecido 2 meses no hospital em Lisboa. Durante este período, foram os avós que ficaram com ele, enquanto eles estavam em Angola, mas não tardou até o pai conseguir uma licença no trabalho, a qual recebia de 4 em 4 anos, para vir gozar a Portugal, durante 6 meses.

Recorda-se de muitas celebrações bonitas, tais como o Natal e a Páscoa que, segundo ela, se assemelham ao que é feito em Portugal. Após o casamento, o Natal variava entre Angola e Portugal. Em Angola, o padre ia cear em sua casa, por sua vez, em Portugal, era o seu tio que se juntava à celebração. Enquanto na Páscoa, a tradição passa por comer o cabrito e a visita do padre à sua casa. Por sua vez, no Carnaval havia a “batucada dos pretos” em Angola, já em Portugal costumava passar toda a noite com os seus amigos, todos mascarados claro.

Natália sempre foi muito caseira e de conforto, além de que era uma apreciadora nata da gastronomia diversificada que a encontrou, entre os seus pratos portugueses favoritos estão a chanfana e o cozido à portuguesa. Já da culinária africana destacou a muamba, prato feito com óleo de palma, galinha, etc. e depois servido com pirão ou funge.

Acabou por não viajar muito para outros países para além de Angola e Portugal, tendo visitado apenas o Algarve, a Madeira e, também Espanha, inclusive Tenerife. Apesar de não gostar muito de concertos e também não ir à praia, compensou nas idas ao cinema recorrentes da sua infância e nos bailes e matinés no clube dos galitos, pois gostava muito de dançar.

O seu momento mais feliz foi a Comunhão Solene na Sé de Aveiro, com 11 anos, para a qual levou o seu vestidinho branco, contando com a presença dos seus tios. Em seguida, destaca o casamento, para o qual a sua mãe veio propositadamente à celebração na igreja de Santo António. Além disso, inevitavelmente, recorda com ternura o nascimento do seu filho com 4kg e uma grande cabeleira, o parto foi feito em casa com o acompanhamento de uma parteira diplomata de Lisboa.

Recorda-se ainda do 25 de abril de 1974 em Aveiro, em que Natália habitava o chalé dos sogros com o seu marido e onde terá permanecido cerca de 6 anos. Este movimento cívico trazia uma mensagem de esperança para as pessoas de nível baixo e, por isso, todos se mostraram felizes, acompanhados de um cravo vermelho simbólico. No entanto, não representou grande impacto no quotidiano do casal, visto que nunca sentiram grandes restrições. Como memórias dolorosas dessa época, descreveu momentos de tortura aos comunistas e de uns amigos seus em África, quando presos acordavam-nos às 5h da manhã e metiam-nos por baixo dos pingos consecutivos do chuveiro.

Por sua vez, Natália e o seu marido não quiseram mudar logo porque estavam com receio de cortarem o vencimento do homem, mas lá decidiram ficar. O seu filho formou-se em Farmácia na Universidade de Coimbra, tal como a sua nora que era de Lisboa, mas vinha todos os fins de semana a casa visitar os pais. De momento vive em Aveiro com a sua mulher, pelo que desta relação terá resultado um filho e, portanto, neto da Senhora Natália.

Ainda antes do 25 de abril, já tinham em vista a construção de um prédio com 3 andares, mas tiveram de esperar 3 anos, devido à falta de material. Posteriormente, construiu então um prédio cor-de-rosa com o seu marido em Aradas, este tinha 6 apartamentos, a parte de cima continha um salão, terraço e bar. Eles viveram acompanhados de 6 gatos no 3º andar, de onde Natália caiu na consoada de Natal, tendo partido o calcanhar em 4 partes e ter sido descoberta uma infeção grave na bexiga. Por sua vez, sofreu tratamento tanto para a infeção, como para os diabetes, que já se encontram controlados. Para este tratamento decidiu permanecer num local calmo, onde pudesse passar os seus dias, pelo que escolheu o lar em Albergaria-a-velha, também porque é onde se encontra a sua tia, da qual tanto gosta.

O seu marido terá morrido há algum tempo e como planos para o futuro tem uma viagem planeada com o seu neto de 21 anos, que está atualmente a estudar engenharia no 4º ano (1º ano de mestrado) e do qual gosta muito. Posto isto, tencionam viajar juntos para matar as saudades, como ela costuma dizer: “vão dar uma passeata e depois logo se vê para onde se vai, mas algures pela cidade de Aveiro”.

Natividade Gemelgo

Foi na bonita cidade de Mogadouro, no distrito de Bragança, que nasceu uma mulher cujo nome peculiar ecoa como uma melodia suave: Natividade dos Anjos Gemelo. É uma mulher bonita, cabelo forte e arranjado, na qual destaco os seus brincos, o colar e o relógio, os quais não consegue dispensar no seu dia a dia.

Natividade nasceu numa época em que a vida era simples e os prazeres eram encontrados nas pequenas coisas. Cresceu ao lado de uma irmã e teve uma infância repleta de brincadeiras ao ar livre, onde os jogos do pião e do saltitão enchiam os dias de alegria. Tinha uma saudade no olhar quando falou que foi à escola e fez a terceira classe.

Aos 22 anos, Natividade começou um novo ciclo ao casar-se com o amor da sua vida e partir para Aveiro, onde construiu seu lar ao lado do marido em Esgueira. Ali, criaram seus dois preciosos filhos, Maria do Céu e António Melo. Os anos passaram-se, e os filhos cresceram, dando a Natividade a alegria de se tornar avó e bisavó, momentos que ela guardava com ternura em seu coração.

Ela lembrava ainda, com carinho a sua casinha pequena, onde viu seus filhos crescerem, e da casa grande que construiu mais tarde, cheia de memórias e amor. Mas, acima de tudo, ela valorizava os laços familiares e a simplicidade da vida. Natividade falou muito mais da sua família do que de si, inclusive, quando perguntei qual o momento mais marcante da sua vida, respondeu que foi o nascimento do seu primeiro neto.

A vida de Natividade foi marcada pelo trabalho e pela dedicação à sua família. Ela trabalhou como doméstica, na horta, tomava conta dos seus animais da quinta e mais tarde ainda trabalhou na empresa que ela e o seu marido construíram juntos. Apesar do incentivo do marido, Natividade nunca aprendeu a conduzir, contudo nunca deixou de ser uma força vital na empresa, apoiando seu marido, o chefe, em todas as tarefas.

Atualmente, com os seus 81 anos, Natividade está no lar há três, e neste encontrou conforto na companhia dos outros residentes e nas atividades oferecidas. Ela gosta especialmente de jogar dominó e às cartas, sendo o seu jogo preferido a bisca. Apesar da idade, Natividade tem muito boa memória e é uma senhora bastante inteligente, esta sabia que Mogadouro fica exatamente a 280km de Aveiro!

Ao longo da sua vida, Natividade viajou bastante para vários locais, mais perto ou mais longe, conhecendo novas maravilhas deste mundo. Foi até Espanha, como é claro. Riu-se quando lhe perguntei se sabia falar Espanhol, tem uma gargalhada muito contagiante. Viajou ainda até aos paraísos de Portugal, aos Açores, à Madeira e até foi ver a casa do Papa.

Para Natividade, a música do cantor Marco Paulo era como uma trilha sonora de sua vida, enquanto sua fé católica era uma fonte de conforto e esperança. Seu conselho para os outros é simples: trabalhar muito, ser feliz, arranjar um companheiro, respeitar e compreender aqueles que nos rodeiam.

A vida de Natividade dos Anjos Gemelo pode ser resumida como uma história de trabalho árduo, amor e gratidão. Ela encontrou alegria nas coisas simples, valorizou os momentos compartilhados com sua família e ensinou aos outros o verdadeiro significado da vida. A sua vida foi um testemunho de que, mesmo nos tempos mais difíceis, o amor e a compreensão podem nos guiar para a felicidade verdadeira.

Eugénia Pinheiro - 64 anos

“O meu nome é Maria Eugénia Martins Pinheiro, tenho 64 anos. Sou natural do concelho de Oliveira do Bairro, mas estou ligada a Aveiro há muitos anos. Sou professora, tenho dois filhos e dois netos. Sou da geração que se apercebeu da ditadura após a ditadura ter terminado; tinha 14 anos no dia 25 de abril de 1974.”

Eugénia é a mais nova de todas as senhoras que aceitaram partilhar connosco a sua história, mas não é por isso que fala dos eventos do 25 de abril com menos paixão e emoção. Ainda muito jovem para conseguir compreender plenamente a situação social que fez irromper a Revolução dos Cravos, Eugénia apenas adquiriu consciência da mesma mais tarde. Em retrospectiva, tem hoje uma visão muito particular desta data histórica.

Infância e juventude

Eugénia relembra a sua infância na aldeia da Mamarrosa, que, apesar da miséria que existia na altura, não era uma aldeia muito pobre. Contou-nos que, embora alguns jovens não quisessem estudar, a maioria das crianças frequentava a escola, denotando isso uma certa consciência das gerações mais velhas. O seu irmão mais velho pertencia ao grupo que não pretendia prosseguir estudos. Apesar de ter feito a admissão, porque foi obrigado a isso, frequentou o liceu nacional de Aveiro - a atual Escola Secundária José Estevão - contra a sua vontade. A situação vigente não favorecia essas pessoas, pois com a guerra do Ultramar, não havia grandes expetativas para o futuro: quem não estivesse a estudar teria de ir combater. Eugénia recorda a morte de dois jovens, com filhos muito pequenos, naturais da sua aldeia, que faleceram no Ultramar: “(...) ir buscar a pé a uma aldeia vizinha o caixão com a bandeira portuguesa em cima. (...) Foi um momento muito marcante e foi aí que o meu pai decidiu mudar de vida”.

Na altura, os seus pais tinham na agricultura o seu modo de sustento e as suas terras estavam espalhadas, pagando contribuição predial, por três concelhos: Oliveira do Bairro, Anadia e Cantanhede. Aliando a carga das contribuições prediais à resistência do seu irmão em continuar a estudar, o seu pai tentou emigrar. Naquela altura não era um processo fácil, principalmente com um filho de 16 anos, “(...) o meu pai teve que lutar muito para conseguir tirar o meu irmão de Portugal”. Conta que o pai não era uma pessoa muito bem conotada do antigo regime “(...) aliás, tinha muito jeito para desenho e o pátio de casa dos meus avós estava cheio de caricaturas de Carmona e de Salazar. Na altura, se me perguntassem se ele era contra o regime eu não saberia responder porque era pequena. Agora associo alguns detalhes. Por exemplo, uma vez um senhor passou em nossa casa com uma lista para votar, mas o meu pai não estava e ele disse: “Também não faz falta”; eles tinham essas pessoas marcadas”. Embora o seu pai não comentasse nada com eles, Eugénia e o irmão iam percebendo alguns movimentos estranhos, principalmente quando várias pessoas se juntavam na adega, no escuro, a ouvir a British Broadcasting Corporation (BBC).

Recorda que o pai tentou viajar para vários sítios, tendo ido tanto para França como para Espanha sem grandes problemas. Posteriormente tentou ir para os Estados Unidos. Inicialmente iria como turista, mas assim que tivesse reunido as condições necessárias, iria levar a família toda. Nesta última tentativa começaram a surgir obstáculos. Questionaram-no sobre como tinha um agricultor rendimentos para ir passear para os Estados Unidos, “(...) ainda por cima o meu pai tem uma pele muito branca e muito fininha, não tem mãos de agricultor”. Relembra o controlo que havia sobre tudo e todos e os problemas que os seus terrenos, localizados nos três concelhos, provocaram. Por isso, só depois de várias tentativas é que deixaram o seu pai embarcar para os Estados Unidos. Ainda assim, foi necessário que o seu tio, que pertencia à Assembleia Nacional, assegurasse que, apesar de o seu pai ter algumas ideias subversivas, não era má pessoa. “(...) Deixaram-no ir, mas ficaram-lhe com as malas no aeroporto; chegou aos Estados Unidos sozinho e sem nada. Não se podia viajar assim na altura, era preciso a polícia e o Governo Civil dar o parecer para o passaporte. (...) investigavam as contas bancárias e se a idade de serviço militar estivesse próxima já não era possível”. Eugénia ainda conserva o primeiro passaporte da sua mãe, no qual está registada a autorização que o seu pai teve de dar para que pudesse viajar. Eugénia recorda ainda outras situações em que a desigualdade de género era evidente: “Para viajar ou para ter conta bancária, as mulheres precisavam da autorização dos maridos. Uma professora não podia casar livremente com uma pessoa que tivesse uma posição social inferior; tinha que pedir autorização”.

Perante esta situação, Eugénia viu a sua situação familiar desabar. Conta-nos que gostava de estudar, por isso não quis ir morar para os Estados Unidos. Foi com a sua família para lá, mas passado pouco tempo regressou sozinha, “(...) foram umas mini-férias”, ficando ao encargo dos seus avós.

Eugénia recorda ainda que chegou a ir visitar os pais aos Estados Unidos e como tal foi interrogada pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Nessa época, fruto da sua inocência, para si era apenas a polícia, mas o contacto foi algo intimidante. Tem ainda memória vívida de outro episódio da sua juventude, em que os seus pais vieram a Portugal durante uns tempos. Certa noite, estando de regresso a casa depois de jantar em casa da sua tia, o seu pai percebeu que se encontrava alguém atrás do portão de sua casa e que estavam a ser vigiados. Sem hesitar, inverteu rapidamente a marcha e retirou toda a família dali. Todos estes acontecimentos vieram a fazer sentido mais tarde, quando Eugénia ganhou consciência política do sucedido.

Eugénia considera-se privilegiada por não ter vivido nos tempos da Mocidade Portuguesa. Acrescenta ainda que poderá ter experienciado a denominada “Primavera Marcelista”. Este foi o período entre 1968 e 1970, no qual houve uma tentativa de operar uma certa modernização social e liberalização política, criando a expectativa de uma verdadeira reforma do regime, o que não se veio a concretizar. A regressão que se seguiu marcou uma nova fase no Marcelismo, mais centrada na guerra colonial, mesmo sob as críticas de alguns grupos económicos que preferiam o mercado europeu ao colonial.

Na escola de 1.º ciclo que frequentou nunca sentiu receio, relembrando a época com algum carinho. Tinham atividades obrigatórias, mas a sua professora estava a dar aulas pela primeira vez e não era tão autoritária. “Íamos a pé todos os dias para a escola, havia convívio tanto na ida como na volta. Tínhamos outra noção de responsabilidade que nos era incutida pelos nossos pais. Agora diz-se que é fundamental a ligação com os pais à escola, naquela altura havia uma noção diferente. Os pais diziam-nos: “ai de ti se eu tenho de ir à escola”, o que na altura era sinal de que havia algum problema.”

Mais tarde, frequentou o 3.º ciclo no colégio de freiras Sagrado Coração de Maria, na Avenida Lourenço Peixinho. Não tem memória de situações propriamente tristes, apenas sentia saudades da sua família. Recorda até com algum espanto o convívio com algumas freiras com uma mentalidade avançada para a época: “Nós pedimos às freiras para ir ver o filme “O Exorcista” e elas deixaram. Não tenho más vivências dessa época, considero que foi importante. (...) até podíamos sair às vezes, para comprar os cartuchos da pastelaria Ramos”.

Vida antes do 25 de abril

Recorda-se vagamente do Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro, mas não tinha consciência do regime. Só mais tarde, em retrospetiva, começou a associar alguns acontecimentos. Ouvia muito o seu pai a dizer: “Cuidado, não podemos estar tantos (homens) à mesa no café”.

Eugénia tinha a noção que a mulher era completamente dependente, não tendo autonomia para tomar decisões. No entanto, por força das circunstâncias, algumas mulheres viram o seu papel mudar, passando a ser as matriarcas e a ter um papel acrescido. “(...) Na nossa região, com tanta emigração que houve, a mulher ganhou alguma autonomia, contrariamente a outras regiões do país. (...) Aliás, havia um grupo de mulheres que podia votar, por força de serem viúvas, consideradas cabeça de casal e chefes de família; as outras não podiam”.

O dia 25 de abril

O dia 25 de abril de 1974 foi particularmente emotivo para Eugénia. Encontrava-se no colégio, numa aula de Português com o professor Mário Rocha, considerado por si como uma figura incontornável da cultura em Aveiro. Nesse dia, soube que estava a acontecer uma revolução em Lisboa, pois o pai de uma aluna, que era militar, ligou a avisar para não saírem para uma visita de estudo que tinham nesse dia. Durante a aula, o professor perguntou se alguém tinha um rádio para que pudessem ouvir a emissão, e Eugénia tinha. Mostrou-nos o rádio que guarda até hoje; azul, da marca Panasonic, que tinha vindo diretamente dos Estados Unidos. Este é um objeto de grande significado para Eugénia, pois foi através dele que ouviu o relato dos acontecimentos durante a mítica aula de Português.

Pós 25 de abril

Logo após o 25 de abril, recorda a carta que o seu pai lhe escreveu acerca da importância da democracia, mas com receio que com os movimentos que então se geraram, Eugénia fosse influenciada por ideias mais radicais. “(...) A partir daí as coisas começaram a borbulhar por todos os lados, eram manifestações, concentrações, comícios animadíssimos, quase toda a gente, nomeadamente os jovens, andava na rua a cantar cantigas de intervenção, viam-se os slogans “O povo é quem mais ordena”. As pessoas tinham vontade de decidir o seu rumo.”

Falou-nos sobre o regresso dos portugueses que se encontravam nas ex-colónias e ainda de outras situações de constrangimento político e social. “Nós assistimos ao ataque à sede do Partido Comunista da varanda do colégio, vimos as pedras da calçada a voar. Houve vários feridos. Era uma altura tão acesa que nós íamos com as freiras levar leite ao quartel para ajudar os soldados. O Movimento das Forças Armadas (MFA) teve muita importância (...)”. E, como em tudo, também houve situações extremas. Eugénia utilizou a comparação de um animal fechado numa jaula há muitos anos para descrever a situação: quando a porta da jaula abre, ou ele não sai do lugar porque não sabe fazer outra coisa ou sai de forma completamente descontrolada. Ainda assim, considera que as pessoas apenas queriam justiça, igualdade, educação e poder ter uma opinião. O contraste com a atualidade é muito evidente; nessa época todos queriam pertencer a algum movimento ou iniciativa. A disciplina de “Introdução à Política” em muito contribuiu para isso também. Aprendeu a dar nomes àquilo que tinha vivido e sentido, mas que na altura não podia mencionar. Havia sessões de sensibilização do MFA pelo país inteiro com as salas cheias de pessoas a querer ouvir. “Era tudo novidade, era a ânsia de saber. Cada pessoa era um voto! (...) A seguir a 1974 não havia nenhum jovem que não pertencesse a um movimento estudantil de um partido qualquer”, recorda Eugénia, pois também ela se envolveu em movimentos estudantis. Mais do que uma questão ideológica, era uma questão participativa.

Para Eugénia, o sentido de comunidade era o mais importante, aquilo que a faz recordar o 25 de abril e não o deixar adormecer. Dava-lhe um gozo enorme, tal como diz, poder andar em grupo na rua e cantar as cantigas de intervenção. Foram tempos de grande euforia!

Eugénia nota ainda que, apesar de tudo, ocorreram alguns excessos, fruto da euforia da época, que hoje seriam considerados impensáveis. “(...) Foram anos de tudo, de exageros e extravagâncias, mas essencialmente anos de alegria e de esperança, de acreditar que deixaríamos de ser o orgulhosamente sós”.

Considera que a descolonização ocorreu no limite, pelo que, não sendo a ideal, foi a possível. Recorda-se de um episódio que ocorreu quando frequentava o ensino secundário, com uma professora de alemão e uma colega que tinha vindo das ex-colónias. Durante uma aula, essa colega manifestou o seu desagrado face ao 25 de abril e, perante tal afirmação, a professora disse-lhe muito serenamente: “A seguir ao 25 de abril, podemos não ter feito as melhores escolhas, mas há uma coisa que não se pode discutir, a revolução de 25 de abril de 1974 foi fundamental, essencial. O que aconteceu a seguir já estava nas nossas mãos, porque pudemos decidir”. Esta mensagem marcou Eugénia e a sua forma de olhar para os acontecimentos.

50 anos depois

O facto de ser professora e o contacto que tem com determinadas situações deixa Eugénia algo preocupada com as adolescentes e jovens mulheres. Considera que a violência, física, psicológica e verbal é uma realidade cada vez mais constante. No seu tempo, “(...) ai de alguém que com a nossa idade nos fizesse isso!”. Nos seus tempos de juventude, a igualdade de género e a educação sexual não eram tópicos de conversa, mas as jovens mulheres, como Eugénia, não permitiam esse tipo de comportamentos.

Lembra ainda, que, nos tempos de ditadura, nas terras e nas fábricas, nem que o trabalho fosse igual, a mulher recebia metade do valor auferido pelo homem. Nesse sentido, denota evolução, mas “(...) A mulher tem que procurar valorizar-se, valorizar a sua autoestima, procurar ter sentido na vida, ser autónoma, ser informada, ser responsável”.

Em relação a todas as mudanças que foram surgindo, foi feito um caminho de entusiasmo, envolvimento e cidadania. Não foi perfeito - avançou em algumas coisas, falhou noutras -, mas foi sempre por escolha, tendo nas mãos o poder de tomar decisões. Volta a referir que quando “saímos do orgulhosamente sós” e entrámos na União Europeia, a livre circulação de pessoas foi uma oportunidade fantástica para alargar os nossos horizontes. Em relação aos imigrantes que escolhem o nosso país, considera ser necessário criar condições para que se sintam acolhidos.

O 25 de abril tem assim um grande significado para Eugénia, “(...) o caminho pode não ter sido sempre em linha reta, mas não lhe retira o brilho”. Agora incomoda-a a abstenção, a indiferença, o radicalismo, a xenofobia. Sente que tudo isso mata a democracia. “(...) A revolução de Abril entregou-nos a democracia, e, se nós nos deitarmos à sombra dos cravos a achar que está tudo feito, estamos a entregar toda esta luta. É uma falta de respeito por aqueles que nos antecederam, que morreram. Todas as pessoas podem votar, têm a possibilidade de escolher um rumo que garanta o desenvolvimento do país.” Perdeu-se parcialmente o sentido de coletivo e o querer do bem comum.

Eugénia descreve as eleições após o 25 de abril com a palavra “alegria”, relembrando as grandes filas para votar e os bancos que as pessoas levavam para se sentarem e descansarem enquanto aguardavam pela oportunidade de exercer o seu direito. Para aquelas vozes destoantes, que dizem estarmos numa situação pior do que antigamente, Eugénia deixa o recado: “(...) isso é não ter absoluta noção do ”Portugal tenebroso e cinzento” que éramos (...) às vezes parece que não temos memória”. Somos o país da saudade, mas é necessário que, neste tema, coloquemos essa característica de lado e façamos a nossa parte na luta pela democracia, porque ainda temos muitas fragilidades. Se temos possibilidade de intervir em praticamente todas as áreas fundamentais da sociedade, como a saúde, a educação e a habitação, então temos uma responsabilidade acrescida. Considera fundamental que consigamos distanciar-nos do ruído gerado em torno da política e procuremos estar devidamente informados.

Relembra ainda o 1.º de maio e toda a agitação que se vivia. Algumas pessoas sabiam exatamente o que estavam a fazer, até porque começaram a surgir sindicatos que lutavam pelos direitos dos trabalhadores; outras saíram à rua pelo simples facto de ser uma animação. Na sua opinião, hoje em dia transferimos muitas das responsabilidades para o Estado, quando na verdade o destino está na nossa mão. Não estando satisfeitos com o rumo que o país leva, a resposta permanece numa das maiores conquistas do 25 de abril: o poder de voto. “(...) Governar em ditadura era fácil, um mandava e os outros faziam, não havia como fugir. Agora governar em democracia é outra coisa, tem outra complexidade”.

Tendo sempre na memória os seus alunos e a responsabilidade da sua condição de professora, fez do seu desafio ensinar quem parece não querer aprender. Somos uma sociedade de direitos e deveres e nas suas palavras: “(...) o 25 de abril não é apenas um feriado, é um processo. (...) Os capitães de abril entregaram-nos a democracia (...)”. Relembra ainda a frase célebre de Edmund Burke: “Para que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada”.

O legado da Revolução

Para Eugénia o maior legado que o 25 de abril nos deixou “(...) foi a capacidade de assumirmos o destino nas nossas mãos, de pensar que o país é aquilo que nós quisermos. E nós não queremos ser orgulhosamente sós. Não queremos voltar a ficar ostracizados na cauda da Europa. Queremos desenvolvimento, queremos crescimento, queremos respeito, queremos equidade social. Essencialmente, queremos democracia. E isso, para mim, é o maior legado”.

Conselho para as Mulheres de “hoje”

Quando lhe pedimos uma nota final para deixar às jovens mulheres, enfatizou de novo a importância da conquista da autonomia: “(...) Em primeiro lugar, uma mulher deve procurar ser autónoma e não depender de um homem para organizar a vida. Caramba, era só o que nos faltava! Nós agora pensamos que precisamos de um homem, ou seja de quem for para nos orientar. Mas nós temos a nossa vontade própria, temos a nossa visão e somos capazes. (...) Temos o poder de decisão nas nossas mãos!”.

Fernanda Lucas - 85 anos

“Sou a Mimi, tenho 84 anos e vivo em Aveiro há muito tempo.”

A história de Fernanda Lucas, ou Mimi como gosta de ser chamada, é um pouco diferente daquilo que estaríamos à espera, mas é essa diversidade que nos permite ter uma visão mais completa da vida antes e depois da revolução. Uma mulher com um sentido de humor apurado, vanguardista, sem medo de fazer diferente, mas, ao mesmo tempo, muito fiel aos seus valores.

Infância e juventude

Cresceu na aldeia de Marinha das Ondas, na Figueira da Foz, que refere ser a última aldeia do sul do concelho, fazendo fronteira com Pombal.

Teve uma infância boa. Uma das memórias que guarda é a de, desde os 7 anos, todos os sábados, às 18 horas e 55 minutos, ir a correr para junto do rádio, cujo botão de ligar não conseguia alcançar. Pedia que o ligassem para ouvir a emissão infantil da Emissora Nacional. Era um programa protagonizado por uma senhora que contava histórias para crianças e isso era algo que a encantava porque ainda não sabia ler e os seus pais não tinham tempo para lhe contar todas as histórias que gostaria de ouvir.

Frequentou a escola até à 4.ª classe. No entanto, na 3.ª classe ficou sem professora e os pais colocaram-na num colégio católico, em Leiria. Recorda com um sabor agridoce esses tempos. Diz ter sido castigada indevidamente e que isso a marcou. Contudo, em retrospetiva, realça a importância que essas experiências tiveram no seu desenvolvimento emocional: “(...) mas, por outro lado, eu tinha 8 anos e talvez isso me tenha feito ver as coisas de outra maneira”.

Após a 4.ª classe foi para Coimbra, aliando dois motivos: o primeiro era a impossibilidade de, na Figueira da Foz, prosseguir estudos após o 2.º ano de liceu; o segundo era o aproveitar do embalo, uma vez que o seu irmão mais velho tinha terminado esse mesmo 2.º ano de liceu e iria mudar-se para Coimbra para continuar a estudar. Esteve em Coimbra até ao 7.º ano, tendo nesse ano reprovado a duas disciplinas, incluindo a filosofia. Disse-nos com uma pequena gargalhada: “(...) não sou nada filosófica, sou mais das ciências”, algo que pudemos comprovar pelo que nos contou do resto do seu percurso.

Fulcrais para a sua história são os antecedentes dos seus pais, ambos com juventudes ligadas a negócios. A sua mãe ajudava o seu avô num pequeno comércio do qual era proprietário; aquilo a que atualmente a Dr.ª Mimi chama de minimercado, pois vendiam desde bens alimentícios a todos os tipos de tecidos, linhas e até petróleo. Ao contar-nos isto recorda-se também de estar nessa loja e de ajudar o avô a medir os vários produtos, uma vez que não vinham embalados, como hoje estamos habituados. Não mexia no azeite, mas media petróleo e esta era uma atividade que a fazia sentir-se útil e da qual gostava.

Por outro lado, o seu pai ficou órfão aos 7 anos, tendo ido trabalhar para uma loja. Sendo uma pessoa bastante inteligente, essa experiência contínua permitiu-lhe introduzir-se no mundo da gestão de negócios. Negociava adubos com a “União Fabril” e cimentos com o “Cabo Mondego”. Enquanto trabalhava na loja era cliente da importadora de Coimbra (um armazém de produtos de mercearia), mas foi alargando o leque pelo que, a certa altura, criou o seu próprio armazém na aldeia. Algum tempo mais tarde, conseguiu reunir cerca de 20 investidores, criou uma sociedade e fundou a “Importadora do Oeste”.

É então, após o 7.º ano, em Coimbra, que ocorre uma das revoluções da vida da Dr.ª Mimi. O seu irmão estava já a frequentar o Técnico de Coimbra, não estando a gostar. Convencidos pelo seu irmão, o pai e a mãe de Fernanda mudaram-se para Lisboa.

Concluiu o 7.º ano e seguidamente frequentou a Escola Superior de Farmácia durante 3 anos. Contudo, para poder licenciar-se em Farmácia, teria de se mudar para o Porto, uma vez que era o único local no país onde tal era possível: “(...) nem Coimbra tinha, vejam como eu sou antiga”.

Vida adulta

Entretanto começou a trocar correspondência com um ex-colega do seu irmão, que se encontrava a trabalhar em Moçambique, numa universidade. Tinha-se licenciado em “Geologia e Minas” em Coimbra e, para não ser obrigado a ir combater, acabou por ir trabalhar para o Ultramar. De facto, naquela altura, os jovens do sexo masculino eram obrigados a fazer a tropa e a ir para a Guerra, exceto se fossem trabalhar para as comunidades do Ultramar. Também o seu irmão, após terminar o curso, ingressou na Marinha, pois não queria ir para o exército. Como tal, não foi requisitado para o conflito armado.

Tinha muitas cartas desses tempos, trocavam-nas semanalmente, e o pedido de namoro surgiu exatamente por essa via. Aliás, realça que nesse tempo era assim que as pessoas comunicavam quando se encontravam distantes; era habitual enviar postais de boas festas e escrever para todas as amigas, como as que tinha conhecido no colégio. Mas não foi só o pedido de namoro que ocorreu à distância, foi também assim que perguntou à Dr.ª Mimi, após cinco anos sem se verem, se queria casar com ele.

Ao fim de três anos na Escola Superior de Farmácia, foi então morar para o Porto, para a rua de Cedofeita, durante dois anos. A sua residência ficava por cima de uma farmácia na qual trabalhou durante esse período.

No verão de 1968, o seu noivo regressou a Portugal, em licença sabática durante seis meses, e viram-se, pela primeira vez desde que eram namorados, na estação de Campanhã.

Duas semanas antes de casar, em outubro desse ano, foi à faculdade para fazer o último exame que lhe faltava. O objetivo era terminar o curso no verão desse ano, mas havia uma unidade curricular - Bioquímica - que, embora gostasse imenso, tinha um exame complexo, com muitas demonstrações e, por isso, acabou por ser levada a época especial. Era a derradeira oportunidade porque iria casar quer tivesse terminado o curso quer não e, em breve, estaria de viagem para África. Esta responsabilidade deixou-a bastante nervosa, o que chamou a atenção do assistente de Bioquímica, que lhe perguntou o motivo. Ela contou-lhe os seus planos para o futuro. Entrou na sala de exame, o professor indicou-lhe qual a demonstração que deveria fazer e… Mimi respirou de alívio: era uma das que sabia fazer! Foi ao quadro, pegou no giz e fez a demonstração toda. No final do exame mandaram-na embora, mas antes de sair da sala ouviu o assistente perguntar ao professor: “Podemos dizer a esta senhora que pode ir tranquila?”. O professor ficou com uma cara meia desconfiada e respondeu “Sim, mas porquê?”. Então o assistente cochichou-lhe ao ouvido pelo que o Professor, mudando a sua expressão e sorrindo respondeu para Mimi: “Pode ir tranquila!”. E assim foi, terminara finalmente o curso!

Casou em outubro, foi em lua de mel e, em fevereiro de 1969, partiu rumo à África. Foram de barco, numa viagem de cerca de 20 dias.

A vida em Lourenço Marques

Apesar de ter gostado muito de viver em Lourenço Marques - atualmente Maputo - sentia falta da família. No entanto, conseguiu rapidamente emprego. Aliás, mal chegou foi recrutada por um senhor, dono de algumas farmácias. Sabiam que o seu marido casara com uma farmacêutica e uma dessas farmácias estava sem direção. Além disso, e porque a farmácia não lhe ocupava o dia inteiro, acabou por dar também aulas de físico-química num colégio privado. Ainda assim, confessa que não adorou a experiência por nunca ter almejado o ensino.

Ficou grávida e teve os seus dois filhos em Lourenço Marques. Considera que tinha uma vida fácil porque após o primeiro filho teve uma empregada e, após o segundo, passou a ter também um cozinheiro.

Antes do 25 de abril

Em Lourenço Marques não se falava muito do clima que se vivia em Portugal continental, mas também nunca houve grande interesse em envolvimento político por nenhum dos elementos da família da Dr.ª Mimi, mesmo na família mais alargada: “Nunca nos metemos em política e a vida correu-nos sempre bem”.

Lembra-se de a polícia ter ido buscar alguém durante um baile académico da cidade universitária, mas sem grande alarido, continuando o resto das pessoas a dançar. Teve ainda um elemento da família com uma patologia psiquiátrica que foi encontrado em frente à casa de António de Oliveira Salazar com uma arma e, evidentemente, foi preso. Foi com o seu pai visitá-lo a Caxias, o que a chocou, pelo facto de ser uma prisão subterrânea com poucas condições. Sendo um ato fruto da patologia da qual padecia, conseguiu provar-se que não havia intenção consciente de matar e acabou por ser libertado.

Sabia que havia muita informação que era manipulada - cortada pelo “Lápis Azul” - “(...) as pessoas não diziam o que queriam”. As revistas tinham muito mais público porque era lá que, por trás de artigos mais leves, se encontrava informação camuflada - algumas pessoas percebiam, outras talvez não. “Nós líamos os jornais, mas já sabíamos que não diziam a verdade toda”. Recorda ainda que, depois da 4.ª classe, o seu irmão e um amigo fizeram um jornal com histórias e anedotas - nada com aparente contexto político. O amigo do seu irmão acabou por enveredar pela via política, mas acabou em Moçambique, já muito após 1974. Embora não possa assumir que houvesse mensagens anti-regime nesse jornal, admite que talvez houvessem segundas intenções em algumas histórias. Sabia ainda que algumas canções estavam interditas aos ouvidos do público, como as de Zeca Afonso.

Relativamente a viagens, recorda-se de ter saído de Portugal, mas acompanhada pelo pai. Foi numa altura em que o seu pai havia enveredado pela área da confeção de peças de roupa e foram, de carro, até à Alemanha, para ver uns tecidos. A Dr.ª Mimi falava um pouco de francês, que era uma das línguas mais úteis na Europa, à época, e dava-se bem com mapas. Acabou por ser muito útil para orientar o seu pai na cidade e para conseguirem chegar aos locais onde poderiam cumprir o seu objetivo.

No que respeita à guerra do Ultramar, embora vivesse em Moçambique, e não tivesse nenhum familiar a combater, teve um amigo, médico, que foi recrutado para a zona do conflito. A filha desse amigo era madrinha da sua filha e, por isso, a Dr.ª Mimi começou a escrever-lhe cartas em nome da filha. A verdade é que a sua filha ainda nem falava, mas as cartas iam em primeira pessoa e na resposta sentia-se que levavam uma lufada de ar fresco. O seu amigo respondia com muita alegria.

Quando a questionámos sobre a PIDE, lembra-se de sempre lhe ter sido incutida uma ausência de gosto por essa entidade. Nunca a abordaram e também não sabia identificá-los.

O 25 de abril - Entre Moçambique e Portugal

Em Lourenço Marques só souberam da revolução após um ou dois dias e a Dr.ª Mimi, tendo tido conhecimento do que se passara no Largo do Carmo, ficou algo aflita. De facto, os seus pais moravam em Lisboa e não lhe era possível entrar facilmente em contacto com eles.

Tinham decidido, em Janeiro de 1974, regressar a Portugal, ainda que não soubessem se temporária ou definitivamente. O seu marido atingia nesse ano a idade de ser dispensado do recrutamento para a tropa e o plano era vir em Julho ou Agosto até Portugal com os filhos passar uns tempos e “Ver como era viver cá”. Deixavam as coisas que tinham embaladas para a eventualidade de não quererem regressar. Assim, nessa altura compraram as viagens, sem fazer a mais pequena ideia do que viria depois.

Com o 25 de abril, houve muita gente a querer voltar para Portugal. A sorte da sua família foi já ter as passagens compradas e, por isso, ter tido oportunidade de organizar tudo com alguma calma. Recorda que houve imensa gente que não conseguiu regressar e, muitos dos que conseguiram, acabaram por ficar despojados dos seus bens.

Regressados a Portugal, o seu marido rumou a Inglaterra para ingressar num Mestrado, tendo a Dr.ª Mimi ficado em Lisboa, em casa dos seus pais, durante cerca de um ano. Acabou por não procurar emprego porque sabia que, após o Mestrado, o seu marido iria trabalhar para a Universidade de Aveiro. Entretanto, inscreveu-se numa pós-graduação em Inglaterra, na zona onde o seu marido estava.

Ao regressar do Reino Unido, foi transportada por um amigo do seu marido que lhe perguntou o que tinha aprendido na pós-graduação e que, após a conversa, lhe perguntou se queria ir trabalhar para o Departamento de Química. Aceitou o convite e foi na universidade que trabalhou até se aposentar.

De certo modo, a sua vida acabou por ser mais difícil em Portugal porque trabalhava muitas horas e não tinha nenhum empregado para a ajudar. Trabalhou com um supervisor conhecido e bastante exigente. Não o queria dececionar e muito menos queria que pensassem que estava a ser protegida. Havia alturas em que saía do trabalho quase às 23 horas, após um dia de colheitas, para poder processar as amostras. No entanto, no dia seguinte, entrava exatamente à mesma hora, independentemente da hora do término do anterior. Considera que o final da sua carreira foi mais fácil por ter mudado de linha dentro da Química.

Enquanto trabalhou na universidade, fez também voluntariado no Centro Universitário Fé e Cultura (CUFC), orientando crianças do Bairro de Santiago, do 1.º ao 9.º ano, após a escola. Nunca se sentiu muito à vontade para dar explicações aos mais velhos pelo que pedia ao marido para o fazer, uma vez que tinha alguma experiência de docência universitária.

Após a aposentação começou a ser voluntária no Hospital Infante D. Pedro, na Cáritas de Aveiro e na Associação de Defesa e Apoio da Vida (ADAV). Atualmente, abandonou apenas a ADAV, mas continua as suas atividades de voluntariado nos restantes locais. Por isso, se algum dia o leitor tiver de ficar uns dias no hospital, poderá ter a sorte de se cruzar com este sorriso doce.

O legado da Revolução

A verdadeira diferença que sentiu no pós-revolução foi a possibilidade de votar. Além disso, reconhece que passou a haver liberdade de expressão e salvaguarda a importância da criação do Serviço Nacional de Saúde, que considera ter sido um projeto bem organizado.

Relembra os primeiros dias e o 1.º de maio: as multidões na Baixa de Lisboa, onde inclusive esteve com a cunhada, em 1975, e o ambiente de festa. Nunca esses aglomerados teriam sido possíveis em tempo de ditadura.

No entanto, sente que os valores com que cresceu e que considera fundamentais se estão a desmoronar. Não acha que estejamos a caminhar para um mundo melhor como país e sociedade. Reconhece que a internet e a globalização trazem muitas vantagens, mas que também estão carregadas de inconvenientes.

Conselho para as Mulheres de “hoje”

Muito mais haveria a dizer, mas quando lhe pedimos que deixasse um conselho para as jovens mulheres de hoje, falou-nos acerca da sua visão do papel da mulher como mãe. A revolução trouxe liberdade e novas oportunidades que as mulheres nunca tinham tido. Por isso, as mulheres estão mais focadas na sua carreira e a adiar o projeto parental. A contribuir para esse adiamento está também uma vida mais difícil com o impedimento de abandonar a casa dos pais. Tudo isso se está a refletir na sociedade e ainda se acentuará nos próximos anos. A mensagem que deixa, para as jovens que assim o desejem, é a seguinte: “Que sejam boas mães, porque a sementinha que vai de casa é a mais importante”.

Maria da Conceição Correia - 78 anos

“O meu nome é Maria da Conceição da Rocha Correia, e nasci em 1946. Sou natural de Braga, a mais nova de doze irmãos. Seis raparigas e seis rapazes. Três dos meus irmãos mais velhos vieram trabalhar para a “fábrica de Cacia”, quando esta se encontrava nos seus primórdios. Alguns anos mais tarde, vim parar a Aveiro. “Não porque me obrigaram, mas porque foi a cidade que eu escolhi.”

Basta um olhar para perceber que na mente de “São”, como prefere ser chamada, reside muito mais do que aquilo que expressa verbalmente. Uma mulher à frente do seu tempo, determinada e rápida “no gatilho”, Conceição personifica a força de vontade de uma geração agora em decadência, que outrora abriu portas à democracia em Portugal.

Infância e juventude

Conceição relembra com alguma nostalgia os tempos de escola. Em criança, apenas completou a 3.ª classe. Não por falta de valências ou desencorajamento dos pais, mas por causa de uma experiência desagradável que se deu no final do ano letivo. A melhor aluna da sua escola reprovou no exame final por excesso de erros no ditado. A mocidade ficou chocada “(...) a partir daí, não quis continuar na escola primária. Mais tarde, já casada e com filhos, completei o ensino primário e estudei o equivalente ao 6.º ano.”

Tinha 18 anos quando veio para Aveiro trabalhar, desempenhando funções domésticas. No entanto, reconhece a sorte que teve desde o início da sua vida profissional: “Trabalhei sempre em casas de gente rica. O meu primeiro emprego foi numa casa que tinha uma máquina de lavar roupa comprada no estrangeiro. Uma raridade na altura”. Esta casa pertencia a um Aveirense respeitado, proprietário de uma loja de moda e vestidos de noiva. Viajava muito em trabalho, dentro e fora do país.

Conceição desenvolveu uma ampla gama de conhecimentos ao trabalhar em ambientes privilegiados. Não só desenvolveu aptidões práticas, como expandiu significativamente os seus horizontes em relação ao mundo exterior, nomeadamente contrastes gastronómicos, linguísticos e sociais. Além disso, nunca sentiu que a sua liberdade tivesse sido ameaçada. Logo desde a primeira casa onde trabalhou (vale a pena recordar que não era casada e tinha apenas 18 anos), foi-lhe dada total liberdade para explorar a cidade e aproveitar a companhia de amigos nas horas livres: “A minha patroa disse-me que eu tinha a chave, entrava e saía à hora que quisesse.”

O dia 25 de abril

Conceição recorda-se vividamente das transmissões televisivas nos dias adjacentes à “Revolução dos Cravos”. Fora de casa, as ruas de Aveiro estavam desertas. Um país atento ao rádio e “colado” à televisão.

Até aí, São não tinha consciência política do que se passava no país, muito menos dos motivos que estavam na origem da mais recente revolução, que deitava abaixo o regime com o objetivo de instaurar a democracia. Até para o filho recém-formado do seu patrão esta revolução era um acontecimento abstrato. A 250 km do Terreiro do Paço, o 25 de abril era mais uma miragem do que um golpe de estado.

No entanto, os seus relatos mais interessantes surgem algumas semanas depois do 25 de abril. Da forma que descreveu o cenário, tratar-se-ia muito provavelmente de uma ação de sensibilização do Movimento das Forças Armadas (MFA) em Aveiro. Uma certa manhã, ao sair de casa, deparou-se com uma fila de soldados de cada lado da rua. De G3 na mão, as tropas do MFA estavam a patrulhar o perímetro daquela que viria a ser a sede do Centro de Trabalho (CT) do Partido Comunista Português (PCP) em Aveiro.

Dada a proximidade da sua residência à sede do CT do PCP, teve ainda a infeliz oportunidade de presenciar a tentativa de assalto às instalações, no verão de ‘75. Tal como aconteceu em grande parte do país, um grupo de populares descontentes, e possivelmente alguns membros de forças de extrema-direita, anti-comunistas, entraram em confrontos diretos com o MFA, em oposição à influência crescente do PCP na política portuguesa. Nesse dia de julho, Conceição ouviu tiros, gritos e garrafas a estilhaçar. Uma amiga que estava com ela queria espreitar pela janela, tal era a curiosidade. Implacável como sempre, São relembra as palavras que proferiu de imediato “Queres espreitar pela janela vais para outro quarto! Dentro do meu quarto não morre ninguém!”

A PIDE

A certa altura (antes de 1974), Conceição trabalhou dois anos para uma patroa que frequentava muito a casa do padrinho, em Lisboa. Foram dezenas as vezes que São interagiu com o senhor em causa, sempre com o maior respeito. Acompanhando a família em férias ou fins de semana, trocou algumas conversas com ele.

Algum tempo depois do 25 de abril, encontrando-se já em casa própria, assistia ao noticiário, quando ouviu um nome familiar ser mencionado. O nome do padrinho da ex-patroa. Curiosa, aumentou o volume do televisor, e qual foi o seu espanto ao descobrir que o homem era um funcionário da PIDE e a notícia retratava a sua captura, que decorrera nessa mesma madrugada.

Nos dias de hoje, situações destas são impensáveis. Por mais diversas que sejam as preocupações humanas no século XXI, raramente envolvem o terror de ser preso por dizer algo considerado “incorreto” ou “disruptivo”. Conceição, sem sequer imaginar a ocupação do sujeito em causa, jamais revelou cores políticas ou interesses pessoais em contexto de trabalho, ao longo da sua longa carreira profissional. “Sempre fui muito reservada nesse aspeto. Foi assim que fui educada e foi assim que eduquei os meus filhos.”

Nos anos que se seguiram, São descobriu por meio de livros e documentários as horríveis atrocidades perpetradas pela PIDE. Refletindo sobre o caso particular do “padrinho”, comentou: "Se algum dia eu tivesse dito algo negativo sobre o regime... Imagine só o que seria de mim". Por sorte, essa realidade ficou apenas na nossa imaginação.

Vida adulta e pós 25 de abril

Conceição casou em 1976 e teve dois filhos. Recorda com carinho a alegria do seu pai ao brincar com os meninos. “Era uma paródia, quando estavam os três juntos!”

Mãe atenta, profissional dedicada e filha exemplar. Conseguiu conciliar a vida familiar com o seu emprego, assumindo as responsabilidades de sustento financeiro. Quando os rapazes eram pequenos, levava-os consigo para as casas onde trabalhava, acabando por demorar mais tempo do que o previsto a terminar o serviço. No entanto, nunca se arrependeu de todas essas horas extraordinárias e hoje sente-se orgulhosa de tudo o que fez por eles. Cuidou do seu pai quando ele envelheceu e enfrentou desafios matrimoniais de elevada gravidade, tendo resistido durante anos, apenas em prol dos seus filhos e em compromisso com a sua unidade familiar.

No que diz respeito aos seus deveres cívicos, Conceição participou ativamente em todas as eleições desde 1975. Está muito bem informada quanto à situação atual dos partidos portugueses e estuda sempre o boletim antes de votar, de forma a não haver enganos. Ainda este ano, 50 anos volvidos da Revolução dos Cravos, um membro da mesa de voto ofereceu ajuda para meter o seu voto na urna, poupando-lhe o trabalho. “Não, não. O voto é MEU!” respondeu de imediato.

Desigualdades de género

Enquanto empregada doméstica, nunca sentiu que tivesse menos direitos do que os homens ou mulheres de classes sociais mais elevadas do que a sua. Antigamente, em restaurantes de elite, era costume haver salas de refeição para as empregadas e motoristas. Ainda assim, não houve um único patrão ou patroa que não quisesse a sua companhia à mesa. Tanto no restaurante, como em casa.

No que diz respeito às saídas à noite e passeios de carro, São tinha uma estratégia infalível, como sempre. Ao sair com rapazes, ficava sempre encarregue dos itinerários e das chaves do carro. Ouvira muitas histórias de raparigas abandonadas nos bailes, sem terem como regressar a casa. Como tal, nunca deixou que nenhum homem se impusesse a esta regra. Se a chave não ficasse no seu bolso, Conceição também não saía de casa. E esse era um risco que os rapazes não estavam dispostos a correr!

Apesar de reconhecer que foi privilegiada por nunca ter visto a sua liberdade condicionada por alguém (muito menos por rapazes e/ou homens), confessou que foi discriminada uma vez por ser mulher. Ironicamente, o episódio deu-se vários anos depois do 25 de abril.

A certa altura, Conceição era a primeira titular de uma conta que continha dinheiro do pai. Uma tarde, em casa do seu irmão (segundo titular da mesma conta), descobriu várias cartas do banco referentes ao extrato e determinadas transações. Conceição ficou intrigada. Sendo ela primeira titular, porque é que não tinha recebido a mesma correspondência? Na segunda-feira seguinte foi ao banco expor a situação: “Quero falar com o gerente”, exigiu. “Não está”, respondeu-lhe um funcionário de vinte e poucos anos. “Falo com o subgerente, então” resmungou, impaciente. “Também não está”, voltou a responder o funcionário. “Chegue-se aqui ao pé de mim que eu não o ouvi bem” ripostou São, que aproveitou o momento para agarrar a gravata ao rapaz e ordenou que chamasse o gerente. Poucos segundos depois, ele apareceu. Questionado sobre as cartas, a resposta foi a que ela temia: “Ele recebe as cartas, porque ele é homem.” Conceição não hesitou em cancelar de imediato a conta, levantou o dinheiro, carregou-o na sua mala e foi depositá-lo a outro banco!

Conselho para as Mulheres de “hoje”

Hoje, avó de cinco netos e amante de culinária, São pede a Deus que não lhe traga mais homens, um foi mais que suficiente. Já correu Portugal inteiro e visitou vários países em anos recentes. O seu médico passa a medicação que ela permite: “Nada de comprimidos a mais!”

Apesar dos 78 anos de sabedoria, São fica reticente em dar um conselho às jovens dos dias de hoje… “(...) A juventude não aceita conselhos. Nem mulheres, nem homens.” No entanto, a vida de Conceição traduz-se numa mensagem clara, evidenciada por este episódio jurídico do seu divórcio. O juiz perguntou ao seu marido se ele queria divorciar-se e ele negou prontamente. Conceição insistiu: “Tu não queres, mas quero EU”.

Esta afirmação resume a sua determinação inabalável, ecoando assim os ideais de liberdade que caracterizaram, em tantos sentidos, a Revolução dos Cravos. Em resposta às adversidades da vida e aos tumultos políticos de um país esquecido no tempo, Conceição concluiu a conversa com a seguinte frase: “Mandar em mim, ninguém manda. Manda Deus só.”

Maria da Conceição Simões - 68 anos

“O meu nome é Maria da Conceição Silva Simões e tenho 68 anos. Sou residente na Vila Jovem há mais de 30 anos. Tenho uma vida conjugal estável e dois filhos. Gosto de praticar hidroginástica para me manter ativa e contribuir com a minha ajuda e presença em projetos comunitários de uma associação local.”

Com a resiliência de alguém nos seus vinte anos, Maria da Conceição faz notar a sua postura ativa, sempre avessa à inatividade, mostrando-se feliz com a vida que construiu.

Infância e juventude

A infância de Maria da Conceição Silva Simões é uma história de solidariedade, marcada pela simplicidade de recursos e pela riqueza dos laços familiares. Nascida num ambiente onde a escassez imperava, aprendeu desde cedo a valorizar cada pequena conquista e a partilhar os desafios com os seus pais e irmãos. Os seus pais, trabalhadores incansáveis, enfrentavam diariamente a luta pela subsistência, assegurando que não faltava o essencial à mesa “(...) Ainda sou do tempo em que uma sardinha dava para três, rodávamos à vez a quem calhava a cabeça”.

Apesar das dificuldades financeiras, recorda com carinho os dias da sua infância. Era uma época em que a alegria e a camaradagem preenchiam as lacunas deixadas pela carência material. Na pequena comunidade onde cresceu, a caridade entre vizinhos era uma realidade palpável, onde todos se ajudavam mutuamente nas horas de maior necessidade. As portas das casas permaneciam abertas e os vizinhos partilhavam não apenas as refeições, mas também as preocupações e as alegrias do dia a dia.

Frequentando uma escola mista, foi exposta a um ambiente de aprendizagem onde rapazes e raparigas partilhavam o mesmo espaço. As reguadas nas mãos serviam de lembrete da disciplina necessária para o sucesso académico, mas não apagavam a vontade de aprender. Apesar das limitações financeiras, a escola oferecia boas condições e professores dedicados, que estimulavam o potencial de cada aluno e incentivavam o amor pelo saber. “(...) Foi uma infância bonita, embora tivesse de ir de tamancos para a escola, não havia nada de bullying como há agora, dávamos-nos todos bem. Levávamos umas reguadas de vez em quando dos professores, mas fazia parte.”

Conta nunca se ter apercebido do pairar do regime. Nunca assistiu ou sentiu que houvesse medo, resultado da sua inocência, própria de uma criança. Após concluir a 4.ª classe, enfrentou o dilema, comum a muitas crianças de famílias humildes: a falta de condições para continuar os estudos. Com poucas oportunidades, assumiu responsabilidades domésticas. Foi nesse período que a sua mãe a introduziu ao mundo da costura, uma habilidade que não apenas complementava a renda familiar, mas também se tornaria uma paixão ao longo da sua vida.

Aos 17 anos, Maria da Conceição encontrou emprego numa das camisarias locais, onde a sua habilidade na máquina de costura e o seu foco logo a destacaram entre as demais. Ao longo de 42 anos, dedicou-se fielmente ao seu trabalho, acompanhando as mudanças no mercado e contribuindo para o crescimento da empresa.

O dia 25 de abril

Antes do 25 de abril, Maria da Conceição tinha consciência da existência da PIDE. Embora nunca tenha vivido experiências diretas de repressão por parte deste organismo, estava plenamente ciente dos horrores enfrentados por muitos.

Recorda-se vagamente do dia 25 de abril de 1974. Encontrava-se a ouvir rádio, tal como tantas outras pessoas, quando, para seu espanto, soube da notícia do golpe militar que derrubou o regime ditatorial. Apesar de ter sido um acontecimento chocante, as memórias específicas desse momento parecem desvanecer-se na mente de Maria da Conceição, admitindo que não reteve detalhes precisos sobre o que se passou naquele dia.

Pós 25 de abril

Após o 25 de abril, marcado pelos cravos vermelhos e pela promessa de um novo amanhecer, Maria da Conceição sentiu algumas mudanças na sua vida: “(...) tínhamos mais liberdade (...)”. Os tempos que se seguiram trouxeram consigo a euforia própria da conquista de liberdade e, mais tarde, a ampliação dos direitos dos cidadãos e uma sensação renovada de autonomia. Em conversas com a família, o tema da liberdade tornou-se o epicentro, refletindo a importância desse período de transição na história de Portugal e na construção da democracia. Maria da Conceição recorda-se ainda de ir votar pela primeira vez: “(...)não sabíamos quem era o melhor ou o pior, mas íamos com a nossa consciência. Nunca deixei de votar desde então”.

Apesar das mudanças políticas e sociais, Maria da Conceição manteve-se ativa no mundo do trabalho. Até hoje, continua a desempenhar as suas funções profissionais, incapaz de permanecer ociosa. Essa atitude demonstra como a liberdade não só ampliou as suas oportunidades, como fortaleceu a sua vontade em manter-se ativa e produtiva na sociedade.

A presença dos filhos na sua vida é uma fonte de alegria e gratidão constante, proporcionando-lhe uma sensação de realização e plenitude.

O legado da Revolução

Para Maria da Conceição, o grande legado do 25 de abril é a mudança, radical e para melhor, em relação a um passado sombrio vivido sob o regime ditatorial. “(...) Prefiro o agora, não desejo que isso volte a acontecer; que não seja preciso outro 25 de abril.” Expressa um profundo apreço pela liberdade conquistada e pelas portas que se abriram desde então. No entanto, ao refletir sobre os tempos difíceis antes da revolução, expressa uma forte esperança de que as gerações futuras não tenham que enfrentar os mesmos desafios e sofrimentos. Deseja que a democracia e a liberdade sejam preservadas e que um retorno a um regime autoritário não faça parte do nosso futuro.

Maria da Silva Anjos - 77 anos

“Sou a Maria da Silva Anjos, tenho 77 anos, nasci em Arazede, Coimbra, mas criei os meus filhos cá por Aveiro, e agora já tenho bisnetos. (...) Tive uma vida de muito sacrifício, mas tudo se fez e tudo se preencheu.”

Maria da Silva Anjos, natural de Coimbra, partilha connosco a sua trajetória de vida, marcada por desafios e superações. Cresceu e viveu em Coimbra até aos 19 anos, altura em que se casou com um homem 20 anos mais velho e, de seguida, foram viver para Moçambique. Nessa nova etapa da sua vida, enfrentou uma realidade completamente diferente: para além de seu parceiro, o seu marido era também seu patrão. Maria da Silva Anjos destaca que aprendeu muito com essa experiência e valoriza a dignidade com que sempre foi tratada na sua relação.

Infância e juventude

Durante a sua infância, Maria da Silva Anjos foi criada pelos pais numa dinâmica onde o trabalho era a prioridade de todos. Não tinha muita liberdade para seguir os seus próprios sonhos, uma vez que desde muito jovem lhe foi imposta a necessidade de ajudar os pais. Era uma vida “de cão”. Recorda-se de passar os dias a cavar terra, a apanhar azeitona, e sempre descalça. Apesar das dificuldades e da falta de conforto, destaca que havia amor na sua família e que o seu estilo de vida era comum na época: os pais criavam os filhos para trabalhar desde tenra idade. “(...) Era o amor que havia na altura. Eu já não criei os meus filhos assim, já lhes dei uma outra forma de crescer”.

Apesar do esforço diário, o seu pai ganhava apenas dez escudos por dia, o que era uma quantia insignificante. Maria da Silva Anjos teve assim uma infância caracterizada pela necessidade de, desde muito nova, contribuir para o sustento da família.

Na escola, recorda um ambiente geralmente positivo, pois embora existissem punições frequentes, podia ser criança e brincar com as amigas. Fora da escola, não havia muito tempo para tal. Na verdade, os castigos eram muitas vezes justificados por brincadeiras cometidas quando a professora não estava a ver, “(...) andávamos por cima das secretárias, partíamos os tinteiros, fazíamos trinta por uma linha. Nós fazíamos asneiras porque era o bocadinho que tínhamos para brincar”. Chegavam à escola às oito da manhã e após saírem das aulas, às duas horas da tarde, os alunos tinham apenas alguns minutos de liberdade antes de serem chamados para ajudar em casa, sob o risco de serem castigados se não o fizessem.

A experiência escolar de Maria foi também influenciada pela separação entre rapazes e raparigas. No entanto, observa que havia um forte sentido de respeito entre os dois sexos, com os rapazes a manter distância das raparigas. Na altura, sempre esteve rodeada de amigas próximas e até hoje mantém contacto com algumas delas.

Apesar das exigências do trabalho doméstico, gostava de andar na escola e de todas as suas professoras. Mesmo com as suas limitações, era uma aluna dedicada que desejava ser enfermeira. Sempre partilhou essa vontade com a sua mãe, mas rapidamente percebeu que era um sonho que não lhe era permitido.

Depois de terminar a escola ingressou no mundo do trabalho e, apesar de naquela época a desigualdade de género ser muito assente, sempre exigiu ser remunerada de igual modo, ganhando assim, aos 11 anos, 11 escudos por dia.

Durante a sua juventude, viveu uma realidade onde as saídas sociais eram raras: estavam limitadas a idas à missa aos domingos, uma tradição que era, na altura, obrigatória. Atingindo a maioridade, passava a ser permitido às raparigas frequentar algumas festas, mas sempre acompanhadas dos pais e impedidas de olhar para os rapazes. Relembra que a sua mãe não lhe dava permissão para namorar e estava permanentemente a controlar esse aspeto da sua vida.

No entanto, o destino tomou um rumo inesperado quando, um dia, o seu futuro marido, vinte anos mais velho, entrou na sua vida. Para a sua mãe, os homens eram na sua maioria alcoólicos, opinião muito condicionada pela própria vivência com o seu marido, e não queria que a sua filha sofresse com uma vida semelhante. Maria sentia-se frustrada e saturada pela proibição de namorar e pela impossibilidade de poder ir a uma festa, por isso acabou por se casar com ele apenas um mês e dez dias após o primeiro encontro. “Na altura nem deu para pensar.” O casamento aconteceu em Portugal e, logo em seguida, embarcaram juntos numa nova etapa das suas vidas, rumo a Moçambique. “Não sei se foi destino e nem sei como é que os meus pais concordaram.” Diz-nos Maria da Silva Anjos, que a sua grande sorte foi que ele era um bom homem porque ela, jovem e inocente, com certeza que não fazia ideia do que a vida lhe reservaria.

Vida adulta

Foi então para Moçambique, de barco, com apenas 19 anos, e por lá enfrentou uma vida de sacrifícios.

Começou por trabalhar no negócio de comércio do seu marido e, dessa altura, realça os tempos em que ele ia buscar mercadoria à África do Sul. Ficava sozinha o dia inteiro, a lidar com situações para as quais não estava preparada e, para além disso, sem compreender o dialeto local.

Explicou-nos o dia-a-dia no comércio: de manhã vendia legumes e frescos e de tarde arrumava e limpava tudo, vendendo, durante esse período, outros produtos como arroz, açúcar e óleo. Confessa ainda que nem comida sabia fazer, mas tinha muita vontade de aprender. "Conforme a vida se apresenta, vamos aprendendo", reflete, reconhecendo a capacidade de adaptação que teve de desenvolver diante das circunstâncias adversas.

Aos 20 anos teve o seu primeiro filho, logo após o casamento. Enfrentou a maternidade sem ajuda para cuidar do recém-nascido e sem ninguém para a orientar nos seus primeiros passos como mãe, a não ser o seu marido. Tinha um irmão em Moçambique, porém como não eram muito próximos nem viviam juntos, não contava com a ajuda dele. Menos de 2 anos depois, teve o segundo filho, de novo sem ninguém para a ajudar, “(...) No entanto, tudo se criou”.

Antes do 25 abril

Antes da Revolução de 25 de abril de 1974, Moçambique encontrava-se sob o domínio da colonização portuguesa, cuja presença se consolidou entre os séculos XIX e XX. O regime colonial, autoritário e rígido, impunha uma severa divisão racial e social. Os portugueses dominavam os cargos administrativos e de prestígio, enquanto os moçambicanos, subjugados a papéis subalternos, suportavam trabalhos mal remunerados e desqualificados. O acesso à educação e à saúde eram um privilégio raro, reservado sobretudo aos colonos e a uma minúscula elite moçambicana. Escolas e hospitais eram escassos e seletivos, refletindo a desigualdade de um sistema que deixava a maioria de fora.

Quando os seus filhos tinham 7 e 9 anos, Maria viu-se obrigada a enviá-los para Portugal, para casa dos avós, devido ao contexto de guerra que se vivia em Moçambique. Disse-nos que foi muito doloroso viver aquela época sem os seus filhos. Por vezes vinha a Portugal, pois as saudades apertavam, mas tinha de regressar prontamente sob pena de não conseguir voltar a entrar no país.

Antes da Revolução, refere que começou a surgir uma atmosfera de revolta e instabilidade, com problemas e conflitos que assombravam o quotidiano das pessoas com quem convivia.

Como não tinha televisão em Moçambique, guiava-se pelo que ouvia ao seu redor. Recorda momentos de tensão e medo, de ter que ficar trancada em casa, com medo que a qualquer momento a invadissem e lhe acontecesse algo de mal, enquanto testemunhava a violência nas ruas, incluindo o tratamento desumano dado a muitos moçambicanos por parte de alguns portugueses. Maria repudiava esse comportamento.

A insatisfação diante da exploração e da opressão colonial deu origem a movimentos de emancipação. Em 1962 emergiu a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e começou uma luta armada contra o domínio português, em 1964. A Revolução dos Cravos, a 25 de abril de 1974, representou um marco histórico, não apenas para Portugal, mas também para as suas colónias, incluindo Moçambique. A independência de Moçambique foi proclamada a 25 de junho de 1975. Após mais de uma década de luta armada e resistência política liderada pela FRELIMO, Moçambique finalmente alcançou a sua soberania, começando a traçar o seu próprio futuro como uma nação independente.

Depois do 25 de abril

Maria sentiu imediatamente a diferença após esta data marcante, que trouxe consigo uma nova era de liberdade e igualdade para o povo moçambicano, proporcionando um alívio bem-vindo após anos de dificuldades e tensões no país.

Maria e o seu marido pretenderam continuar a viver no país do qual tinham feito casa e onde tinham uma vida feliz. Recorda com saudade a sua moradia desses tempos no “Bairro do Jardim” e a mudança do seu negócio familiar - deixaram a casa de comércio e abriram juntos uma pequena oficina de restauro de móveis, vendendo ainda loiças e eletrodomésticos.

Contudo, após anos de domínio português, tornou-se notória a diferença na sua posição social. Tal como Maria diz, “(...) não houve eleições, Moçambique foi entregue pelos portugueses”. O partido político que ficou no poder desejava controlar tudo à sua volta, querendo ter conhecimento das posses detidas pelas pessoas, restringindo até mesmo o acesso a alguns bens alimentares, como arroz, batatas ou pão. Recorda ainda o episódio em que o seu marido foi preso inesperadamente por ser confundido com outro homem com o mesmo nome, António Alves. Na altura, este foi um motivo de grande revolta, pois após uma vida de trabalho e dedicação a um país que não o seu, foram tratados injustamente.

Maria considera que o rumo que o país tomou após a Revolução foi triste, acabando por influenciar a sua vida, “(...) nós não tivemos direito a escolha”.

Passaram assim seis anos desde a Revolução, altura em que regressou a Portugal, a pedido do marido. Conta-nos que o processo de regresso a Portugal não foi de todo fácil, o seu marido viu-se mesmo obrigado a arranjar uma justificação para um exame médico ao coração e dessa forma ter autorização para viajar. Relembra que sempre se sentu acolhida pelo povo moçambicano e, por isso mesmo, ainda que tenha passado por algumas situações “menos agradáveis”, expressa um profundo apreço e carinho pela comunidade em Moçambique, afirmando que, se não fosse pelo 25 de abril, talvez nunca tivesse regressado a Portugal.

Os primeiros tempos em Portugal foram desafiantes, pois regressaram sem posses nem dinheiro, e foram viver para uma casa com condições bastante precárias, onde permaneceram durante dez anos. Durante a nossa conversa, Maria da Silva Anjos realçou várias vezes a vida de trabalho e sacrifício a que tristemente foi sujeita quando se viu obrigada a regressar a Portugal e a “(...) começar do zero (...)”. Contudo, concluiu com alegria que conseguiu criar os seus filhos e que hoje até já tem netos e bisnetos, por isso tudo valeu a pena.

Diz que o facto de ser mulher nunca lhe causou nenhum transtorno, pois tinha um marido que a punha à vontade e a apoiava em tudo. Apesar da considerável diferença de idade, o marido foi sempre um grande amigo e mentor. Ao chegar a Moçambique, foi ele que a encorajou a tirar a carta de condução, apesar da resistência que muitos mostravam em relação às mulheres condutoras. “Cheguei a Moçambique e o meu marido disse-me para ir tirar a carta de condução, muitos deles não queriam as mulheres a tirar a carta.”

Conselho para a juventude

“Só quero que os meus netos e bisnetos apanhem tudo como está agora. Não está perfeito, mas está bom. Há liberdade. Embora não chegue para tudo, vai-se vivendo. Muita gente não tem noção do que é uma vida de sacrifícios.”

Maria do Carmo Costa - 70 anos

“Chamo-me Maria do Carmo Costa, tenho 70 anos e vivi no Brasil até aos 10 anos, que foi quando o meu pai faleceu. Cheguei a Portugal e sofri um choque de realidade: no Brasil era tudo muito colorido e aqui tudo muito cinzento. Depois de ter voltado do Brasil, vivi em Ouca, Vagos, que foi a aldeia onde nasci.”

Maria do Carmo adora cozinhar, fazer canyoning e dançar; diz que se sente feliz ao fazê-lo. Dona de um espírito jovem e de uma energia contagiante, começou na dança clássica, passando posteriormente para a dança contemporânea, e atualmente está mais voltada para o folclore. Trabalha com idosos, tendo sempre o cuidado de adaptar as várias danças tradicionais portuguesas às capacidades físicas dos seus alunos. Faz espetáculos pelo país inteiro, com o objetivo de mostrar que a atividade física faz falta, mas também para que não se percam tradições tão intrínsecas da nossa cultura.

Infância e vida no Brasil

Em Portugal, o seu pai era alfaiate e a sua mãe era professora primária. Foram para o Brasil porque, em Portugal, um alfaiate não podia casar com uma professora. Nessa época, existiam restrições legais que impediam o casamento entre pessoas com vencimentos discrepantes, o que refletia uma sociedade fortemente hierarquizada e com barreiras sociais e económicas relativamente à livre escolha de parceiros conjugais. Já no Brasil, em Leblon (Rio de Janeiro), o seu pai começou por trabalhar no transporte de aves e ovos. Entretanto montou o próprio negócio, uma quitanda, que era, segundo o que nos disse Maria do Carmo, “(...) um género de mini mercado que tinha tudo e mais alguma coisa”.

Relativamente à escola no Brasil, Maria do Carmo tem várias recordações, entre as quais a de ser a melhor aluna da escola, “(...) porque tinha um grande apoio da minha mãe e éramos premiados por isso, andava sempre com medalhas de ouro ao peito”. Contou-nos ainda que houve uma altura em que baixou as notas, por isso tiraram-lhe a parte de ouro da medalha, tendo ficado apenas com as fitinhas referentes ao segundo lugar. Na altura, foi um motivo de grande vergonha para si. Conseguiu, no entanto, recuperar o primeiro lugar e ainda hoje guarda uma medalha de recordação. Recorda ainda que não viviam num regime democrático, usavam farda e cantavam o hino nacional na escola, mas aprendeu muito, “(...) lá íamos pesquisar na biblioteca a história do Brasil mal soubéssemos ler”.

Uma das memórias mais marcantes que tem da sua infância, passou-se quando tinha nove anos, pela altura do Natal, na sexta-feira antes da sua primeira comunhão. Estava tudo preparado para a cerimónia, tendo sido o seu próprio pai a fazer a roupa que Maria do Carmo iria usar. Nesse mesmo dia, o seu pai teve de ir buscar um camião com mercadoria para o seu sócio. Maria do Carmo estava a enfeitar a árvore de Natal e chamou o pai para lhe dar um beijo de despedida. Foi o último momento partilhado pelos dois, pois o seu pai acabara por morrer nessa mesma viagem.

Depois desse terrível acontecimento, em 1963, a sua mãe decidiu regressar a Portugal, uma vez que poderia exercer a sua profissão de professora em vez de tentar manter o negócio do pai com sócios que não conhecia bem. No seu entender, a vida no Brasil era melhor, “(...) o calor, as frutas, as pessoas eram mais alegres, vivia à beira da praia”.

Chegada a Portugal e sua juventude

Quando voltaram do Brasil, foram para uma aldeia que não tinha alcatrão, viver para uma casa sem casa de banho. Foi um choque. Diz-nos Maria do Carmo: “(...) Portugal era menos desenvolvido que o Brasil, na altura. Nem lavar os pés todos os dias era algo que eu podia fazer, mas cá as pessoas estavam habituadas a isso. Os miúdos eram muito sujos e escuros, sempre descalços. Eu e o meu irmão pareciamos aves raras ali no meio”. Mais tarde, a sua mãe foi dar aulas para o norte, para Carvalhal Redondo, e ela foi para casa de um tio, passando a frequentar a escola da Vera Cruz. Foram-lhe apontados muitos dedos por falar com rapazes na escola, incluindo quando ia para casa com o seu primo, mas no Brasil a escola era mista e era a isso a que estava habituada. Maria do Carmo continuava a ser uma excelente aluna a matemática e a ciências, mas escrevia em brasileiro, então todos os dias apanhava por isso. Recorda que “(...) ainda hoje tenho traumas quando escrevo, revejo se as palavras estão corretas várias vezes. Na hora de ir para a escola tinha diarreia, febre e medo de ir”. O médico chamou a sua mãe para vir falar com ele e disse-lhe que seria melhor que a filha deixasse de ir para aquela escola e fosse com ela para o norte. E assim foi, tendo terminado a 4.ª classe, regressou a Aveiro. Frequentou o curso comercial, na escola Mário Sacramento, vivendo em casa do tio. No entanto, chegava a casa e não a deixavam estudar porque tinha de ajudar nas tarefas domésticas, pelo que acabou por reprovar um ano. Por esse motivo, o seu tio mandou-a para um colégio interno no Porto.

Maria do Carmo confessa que ficou feliz porque iria finalmente ter tempo para estudar, brincar e dormir. Foi para o colégio Lusitano, porque era o único do país que tinha o curso comercial, tendo feito lá o terceiro, o quarto e o quinto anos; “(...) fui muito boa aluna nesses anos. A diretora do colégio, sabendo que eu era uma boa estudante, dava-me livros para ler: Eça, Camilo, Cesário Verde, Florbela Espanca, Fernando Pessoa; e dizia-me para não mostrar a ninguém. Li “O Crime do Padre Amaro” num instante aos 13 anos. (...) Eu consolei-me de ler nesses anos”. Recorda, entre risos, que no final do ano, continuava com excelentes notas a todas as disciplinas, mas com 10 a Português, porque continuava a dar erros.

Quando terminou o curso comercial, o seu tio queria que Maria do Carmo fosse para o Brasil, para ficar responsável pela sua granja. A sua mãe opôs-se, pois queria garantir um futuro para a sua filha e desejava que ela tirasse um curso; nas suas palavras “essa seria a sua enxada para o futuro”. No entanto, a sua mãe não tinha possibilidades para lhe pagar um curso e isso influenciou as suas opções. Optou por vender algumas das terras que tinha herdado do seu pai para pagar ela própria o seu curso. Era muito boa a contabilidade e diziam-lhe que já teria emprego garantido numa fábrica, mas não era isso que ambicionava. Como o dinheiro que conseguiu não era suficiente para pagar o curso que sonhara, Medicina, optou pelo curso de Educação Física e especializou-se em dança, no Porto.

Não deixámos de reparar no orgulho e admiração com que Maria do Carmo nos falou da sua mãe. Recordou um episódio marcante passado numa noite em que estava com a sua mãe e o seu irmão a comer castanhas assadas e a mãe decidiu que ambos já eram crescidos o suficiente, para poderem falar abertamente sobre o que era a menstruação e o que fazer quando esse dia chegasse. Noutros tempos, esse assunto era um tabu, tanto que refere que as suas colegas de escola não tinham conhecimento, nem estavam preparadas quando o momento chegou.

Disse-nos que sempre foi “maria-rapaz”, correndo para o campo de cabras em frente à escola comercial para jogar à bola com rapazes. No entanto, nunca foi fã de desportos coletivos e foi por causa das aulas de uma professora de Educação Física, que se apaixonou por dançar. Talvez estivesse mesmo no seu destino, pois a sua mãe contou-lhe que um dia, com 4 anos de idade, Maria do Carmo viu uma menina a dançar na televisão e disse: “Um dia hei-de dançar como ela”. E assim foi. Maria do Carmo mostrou-nos várias fotografias de espetáculos de dança que realizou ao longo dos anos. Guarda-as com muito carinho pois representam momentos felizes, sendo algumas das suas fotografias preferidas.

Vida adulta

Conheceu o seu marido no Porto, num bailarico daqueles que a PIDE não podia saber que existiam. Era estudante de engenharia, já com a tropa feita e dez anos mais velho que Maria do Carmo - curiosamente até faziam anos no mesmo dia. O seu marido chegou a estar na Guiné e esses tempos deixaram marcas profundas: “(...) quando ouvia foguetes ficava cheio de medo porque pensava que eram tiros. Nunca foi saudosista com intenção de ir a jantares de reencontro de militares, não foram tempos felizes. (...) O grupo dele tinha de ir à frente ver se haviam minas. (...) dos cinco do grupo dele, só ele é que veio inteiro”.

Maria do Carmo relembra assim o início da sua história de amor, contando-nos que começaram como amigos, depois começaram a namorar, mal acabou o curso casou e foi mãe aos 21 anos. Diz que nada disso foi às escondidas pois não estava a fazer nada de errado. Refere-se ao seu marido com imenso carinho, pois em muito contribuiu para que Maria pudesse continuar com o sonho da dança, tornando-se a representante da companhia de dança de Lisboa em Aveiro. “(...) Eu era uma privilegiada porque o meu marido era o meu porto seguro, dava-me sempre incentivo e apoiava-me em tudo. (...) ele via tudo mais à frente que eu, dizia-me sempre “vai para a frente!” (...) Com ele podia ir até ao fim do mundo.” Recorda que a única vez que ele ficou chateado foi quando recusou uma bolsa da Gulbenkian, de três meses, na Holanda, que lhe iria permitir trabalhar com o seu coreógrafo preferido; Maria do Carmo saudosa do calor do Brasil, não quis ir por causa do frio. Infelizmente, o seu marido faleceu há 23 anos.

O que as mulheres não podiam fazer

O diretor da sua escola comercial era muito rígido, não deixando nenhuma mulher vestir calças, sendo obrigatório o uso de saia e meias. Maria do Carmo sabia qual era o motivo e notava o contraste de direitos e privilégios do homem em relação à mulher. Mas, mesmo assim, desafiava as regras, e ia de fato de treino, sendo muitas vezes chamada à atenção. No seu entender aquele era o seu fato de trabalho: “(...) não ia dar aulas de Educação Física de saia e saltos. Era sempre aquele conceito do que parece mal, do que os outros vão dizer, as pessoas não eram abertas e francas, era tudo cinzento”.

Essas diferenças estavam tão enraizadas na sociedade, que as meninas e mulheres sempre tinham crescido com esse peso em cima. O simples facto de gostar de dançar e de não parar quieta era motivo de crítica da sua avó, que lhe dizia para ter comportamentos de menina e estar sossegada.

Antes do 25 de abril

Recorda-se do III Congresso da Oposição Democrática, que decorreu no Cine-Teatro Avenida, em 1973, e da presença da polícia de choque no local. Esse congresso constituiu um momento de viragem na política portuguesa e na estratégia da oposição, unindo as várias correntes ideológicas, políticas e democráticas. Contou-nos ainda de um encontro inesperado que teve no comboio: “(...) Esteve cá a irmã de um rapaz meu amigo, que escreveu dois livros sobre esse congresso e que foram proibidos de ler. Estava eu a ler um desses livros no comboio, na viagem do Porto para Aveiro, quando um senhor da PIDE veio ter comigo a dizer para arrumar o livro, mas de forma educada e simpática”. Ainda hoje tem esses livros. Recorda que não podiam ocorrer ajuntamentos com mais de três pessoas para evitar que existissem comícios não autorizados. Lembra-se também de dois colegas de casa, no Porto, que já eram ligados ao Partido Comunista e que, por isso, andavam muitas vezes fugidos. Tirando essas exceções, a regra era as pessoas não falarem sobre isso: “(...) eu já me sentia posta à margem porque me sentia diferente na maneira de pensar e vestir. Não me queria envolver mais, talvez um pouco por cobardia”.

O dia 25 de abril

Lembra-se perfeitamente do dia 25 de abril. Já era casada, estava grávida da sua filha e vivia em Estarreja. O seu marido saíra de casa às 7 da manhã, ela ficara a descansar a ouvir rádio porque só tinha aulas às 8 e meia. Estava a dar música clássica e, de repente, começou a passar a música ”Grândola Vila Morena”, uma das canções proibidas do Zeca Afonso“(...) pensei para mim mesma: “Então mas isto estava proibido.” E depois ouvi o locutor a dizer “E foi com esta música que se deu a revolução”. Dei um salto da cama e ninguém me aguentou, vesti-me e vim para a rua sem comer nem nada, fui para o centro de Estarreja que estava um caos.” Para Maria do Carmo, euforia é a emoção que melhor descreve este dia.

Pós 25 de abril

Diz que os tempos que se seguiram foram mais tristes do que estava à espera porque as pessoas se aproveitaram da liberdade recentemente conquistada. Faziam uso e abuso da liberdade de expressão “(...) sou livre faço o que quero (...) o que é meu é meu, e o que é teu é meu também”.

No dia 27 de setembro, dia antes daquele que ficou conhecido como o “Dia da Maioria Silenciosa”, nasceu a sua filha - Maria do Carmo faz questão de mencionar. A Maioria Silenciosa foi uma iniciativa política de apoio ao então Presidente da República: General António Spínola. Essa manifestação visava o reforço de posição política desse militar, em reação contra o crescente Comunismo que se instalava em Portugal. Contudo, a 30 de setembro, Spínola demitiu-se do cargo.

Quando a questionamos sobre o poder de voto contou-nos acerca das últimas eleições legislativas que ocorreram antes do fim da ditadura, em setembro de 1973. Tinha sido prometido que seriam eleições livres, mas tal promessa foi obviamente ignorada e a censura, as perseguições e as prisões levaram a oposição a desistir de se apresentar às urnas, não tendo elegido sequer um deputado. Maria do Carmo, tinha os seus 19 ou 20 anos, e foi votar na aldeia de Ouca, “(...) chegou um senhor perto de mim e disse “Tem de pôr a cruz aqui”, ao qual eu respondi “Mas eu sei ler”, mas fui obrigada a pôr a cruz ali, ele ficou ao meu lado a ver ”. Aquele episódio marcou-a de tal modo que, depois do 25 de abril, foi sempre votar: “(...) estive numa fila de 2 horas, mas eu tinha que votar, nem que fosse para pôr a cruz onde me apetecesse”. Nas aulas, sempre incentivou os seus alunos a exercer o direito de voto, porque essa é a via para que não percamos a nossa liberdade. Sente que, por vezes, somos um povo que parece que perdeu a memória daquilo que passou, com saudades de outros tempos, antigos, difíceis e sem voz. Mas Maria do Carmo é diferente; conserva a mesma vontade e inquietação dos seus tempos de juventude.

O legado da Revolução

Quanto ao 25 de abril e ao seu legado, Maria é grata por poder pensar por si e decidir o que quer, desde que se mantenha o respeito pelos outros. “(...) Ensinou-me que a minha liberdade acaba quando interfere na liberdade dos outros, eu evito quando começam a discutir política, futebol e religião.” Considera que evoluímos muito na saúde e educação, mas que nos fomos tornando mais preguiçosos e sem a vontade de outros tempos; que é preciso resgatar essa força de querer fazer mais e em coletivo. “(...) Neste momento, no nosso país, a corrupção é tal que as pessoas que querem fazer algo, já nem querem entrar, não conseguem. (...) Não estamos a ir para melhor, as pessoas ouvem aquilo que querem ouvir. Em relação a alguns partidos, as moscas vão mudar, mas a porcaria vai ser a mesma.”

Conselho para as Mulheres de “hoje”

“Eu acho que as mulheres deviam preocupar-se menos com unhas de gel e mais com o que está à sua volta. (...) Eu vejo coisas que realmente não gosto. Não custa nada, às vezes, dar a mão a outra pessoa que a gente conhece, principalmente se for um vizinho. Vejo muita pobreza à nossa volta encoberta e às vezes podemos ajudar, sem ser preciso alertar. (...) Nós mulheres somos mais observadoras, temos mais consciência porque fomos mais reprimidas; temos a capacidade de observar certas coisas que o homem não consegue.”

Maria Filomena Machado - 70 anos

“Chamo-me Maria Filomena Machado, tenho 70 anos e nasci em Angola. Os meus pais foram daqui para Angola em 1953 porque trabalhavam na área da criação de gado e a vida era muito dura, era uma vida sem futuro. Gosto muito de estar no lar, porque em casa estou sozinha e aqui tenho companhia. Fazemos uns desenhos, pintamos, fazemos trabalhos manuais, ginástica e dança, damos passeios… fazemos muitas coisas. Eu ainda estou bem e também quero ver se ainda vou durar mais um tempo.”

Filomena é uma mulher resiliente que viu a sua vida mudar depois do 25 de abril, quando teve que abandonar o país de que tanto gostava, Angola. Os tempos que se seguiram foram desafiantes, viveu num campo de refugiados, na África do Sul, e mais tarde recomeçou a sua vida do zero em Portugal. No entanto, a sua garra e vontade de viver não deixaram que essas experiências ditassem o seu futuro e, como a própria diz, conseguiu ter uma vida feliz.

Infância e juventude

A procura por uma vida melhor fez com que os pais de Filomena, como tantos outros portugueses, decidissem fazer as malas e emigrar para África. Foi em Angola que recomeçaram a sua vida e onde Filomena nasceu e cresceu, juntamente com três irmãos. Filomena relembra que a sua infância foi marcada pela insistência nos estudos por parte dos pais. Estes, que só tinham a quarta classe e trabalhavam na pecuária, queriam que os filhos estudassem para alcançarem um futuro mais promissor. Filomena fala com carinho do quanto gostava de viver em Angola, “era tudo o que conhecia”. Contou-nos também que quando era jovem tinha o desejo de vir a tornar-se enfermeira, mas o destino tinha outros planos reservados para o seu futuro.

Enquanto estudava conheceu um rapaz, filho de uma família portuguesa, amiga dos pais, que viria a tornar-se o seu marido. Aos 17 anos, acabou o secundário e casou-se. O marido trabalhava nos caminhos de ferro e Filomena começou a trabalhar no negócio de gado dos pais, como secretária. Teve dois filhos, um menino, quando tinha 17 anos, e uma menina, quando já tinha 21 anos.

Vida antes do 25 de abril

No período pré 25 de abril, Angola enfrentava uma realidade marcada por profundas tensões políticas e sociais. Existia uma luta contínua pela independência do regime colonial português, liderada pelos três principais movimentos militares de libertação: o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA). Agostinho Neto foi uma figura central na luta pela independência de Angola; nascido em 1922, em Angola, Neto formou-se em medicina em Portugal, envolvendo-se ativamente no movimento anti-colonialista. Mais tarde, foi cofundador do MPLA, em 1956, o que viria a ser um dos principais grupos de resistência à ocupação colonial durante o período do Estado Novo. A figura de Agostinho Neto continua gravada na memória de Filomena, “(...) era o Agostinho Neto que comandava Angola (…)”. A guerra de independência em Angola foi longa e sangrenta, envolvendo não apenas as forças portuguesas, mas também conflitos internos entre os movimentos de libertação, incluindo o MPLA, a FNLA e a UNITA.

Filomena recorda também que o recrutamento obrigatório de jovens para o serviço militar colonial português era uma norma e, assim sendo, o seu marido teve que ir para a tropa. Os tempos que se seguiram foram desafiantes. O serviço militar implicava a separação de Filomena do seu marido e ele teve que enfrentar as condições adversas do ambiente de guerra e as tensões políticas subjacentes que se viviam em Angola.

Contudo, Filomena revela-nos que, mesmo com os obstáculos que foram surgindo pelo seu caminho, como mãe e profissional, ela e o marido “viveram uma vida alegre e honesta”.

As mulheres antes do 25 de abril

Filomena tinha noção de que existia uma diferença entre os direitos dos homens e os das mulheres antes do 25 de abril, especialmente em Portugal. Em Angola, também conhecia mulheres que não tinham permissão dos maridos para trabalhar, “(...) era difícil, mas em Portugal parecia pior porque as mulheres não tinham direito nem ao trabalho, nem ao estudo. As mulheres serviam para cuidar dos filhos e da casa, mais nada. Em Angola, nós já podíamos ter uma vida em comum com o marido, ajudar e fazer alguma coisa pela nossa própria liberdade (...)”.

O dia 25 de abril

Quando se deu a revolução de 25 de abril de 1974, Filomena tinha apenas 20 anos. Estando a viver em Angola, o que sabia sobre a instabilidade política que se vivia no país onde os seus pais nasceram era apenas aquilo que era transmitido através de jornais e da rádio, sempre com um atraso de alguns dias. Recorda que esses meios de comunicação divulgavam que as forças militares já estavam a tomar posse do governo e que os militares a cumprir serviço em Angola podiam regressar a Portugal. Nas suas palavras, tinha noção de que se tratava de “uma revolução dos militares para não haver mais ditadura e que tinha sido uma libertação”. Na perspetiva de Filomena, a revolução aconteceu porque Portugal estava nas mãos de um governo que ditava uma vida pouco digna, dura e em constante censura para os seus cidadãos. O povo estava descontente. E quando o povo está descontente, a mudança é inevitável.

Pós 25 de abril

A Revolução dos Cravos fez com que muitos portugueses, residentes nas ex-colónias, voltassem para Portugal, através de pontes aéreas ou navios, ficando para sempre conhecidos como “retornados”. Foram centenas de milhares que se foram embora das antigas colónias portuguesas, incluindo os pais de Filomena, que regressaram logo em 1974. Mas Filomena não quis deixar Angola. “(...) Eu gostava de Angola, foi lá que nasci e constituí família. Era o sítio onde eu sentia que pertencia. Tinha uma vida com o meu marido e com os meus filhos. Não quis ir embora!”. No entanto, Filomena não conseguiu ficar muito mais tempo. O “paraíso” chamado Angola tinha começado a desmoronar.

A Revolução em Portugal foi assim um ponto de viragem crucial para a independência de Angola, bem como das outras colónias, e acentuaram-se as guerras civis. Agostinho Neto, líder do MPLA, declarou unilateralmente a independência de Angola, em 11 de novembro de 1975, e tornou-se o primeiro presidente de Angola, cargo que ocupou até à sua morte, em 1979. Começou a surgir uma radicalização de posições políticas e um aumento nas hostilidades dentro das cidades, “(...) antes do 25 de abril, os guerrilheiros viviam só no mato, mas em 1974 começaram a vir para as cidades, a tomar conta das casas e da vida das pessoas, a saquear e a matar”. Esses confrontos custaram a vida de um irmão, uma cunhada e um cunhado de Filomena, “(...) foram os três assassinados. Nós não estávamos na mesma casa, se estivéssemos também nos tinha acontecido o mesmo”.

A crescente pressão do aumento de confrontos militares e a falta de condições de segurança tornou evidente que Filomena e a sua família tinham de lutar pela sua sobrevivência e fugir de Angola.

Vida no campo de refugiados

Juntamente com o marido e os filhos (uma menina de 17 meses e um menino de 4 anos) Filomena fugiu de carro para a África do Sul. Foram na esperança de encontrar um lugar seguro para escapar da revolta no seu país de origem, porque sabiam que o exército de África do Sul mantinha a sua fronteira patrulhada, de modo a impedir avanços dos movimentos de libertação angolanos. Quando chegou à África do Sul, deu por si a viver num campo de refugiados, junto de centenas de pessoas na mesma situação. Eram assistidos pelos militares sul-africanos e pela Cruz Vermelha. “(...) Tínhamos uma hora para ir buscar uma marmita de comida e leite para as crianças, recebíamos apoio médico quando era preciso e davam vacinas às crianças.” Diz-nos emocionada que “foram tempos muito difíceis”.

Filomena viveu esta dura realidade durante dois anos, até ter conseguido vir para Portugal.

O recomeço em Portugal

Veio para Portugal de avião com os restantes portugueses refugiados na África do Sul. Quando chegaram foram colocados numa casa no Caramulo, um antigo hospital de leprosos vazio, vendo-se obrigados a começar do zero. Nesses tempos, os “retornados” eram muitos e foram necessários alguns anos de adaptação, tanto para os que regressavam das ex-colónias, como para os que nunca tinham saído da Pátria. “(...) Tínhamos de organizar a nossa vida sem estragar a dos outros e éramos muitos, alguns tiveram sorte e outros não. Portugal deu-nos uma saída e eu disse assim: eu não morri, tenho de viver, tenho de sobreviver, tenho de aprender, e aprendi.” O seu marido começou a trabalhar em feiras na região de Viseu, lutando pela independência financeira da sua unidade familiar. Filomena e o seu marido nunca baixaram os braços,“(...) na esperança de amanhã encontrar um dia melhor. E assim foi, encontrei um dia melhor”.

Mais tarde, Filomena conseguiu estabelecer a sua vida, “(...) consegui ter uma vida digna”. Depois de o seu marido arranjar um emprego estável, numa fábrica de papel, conseguiram alugar uma casa para viver e criar os filhos. Filomena foi uma mulher de muitos ofícios: fez limpezas, trabalhou em infantários, foi telefonista num museu e trabalhou na Câmara Municipal. É uma mulher resiliente, com coragem e fibra invulgares. A simplicidade nas suas palavras e atos é inigualável; não precisava de muito para se sentir feliz, bastava ter a sua família junto de si e poder viver uma vida serena e digna. Realça que tudo o que fez na vida foi com o propósito de ser feliz e conseguir dar aos filhos o futuro que desejava para si e para toda a gente, porque “(...) uma pessoa é feliz quando os outros são felizes, ainda mais os nossos filhos”.

O legado da Revolução

Quando lhe perguntamos pelo grande legado da Revolução, os seus olhos abriram-se muito e disse-nos convicta: “Foi a nossa liberdade! A liberdade de poder ser e fazer. A vontade de lutar e a vontade de viver”.

Hoje, Filomena guarda a memória dos momentos difíceis que passou, mas diz-nos cheia de certeza que desistir nunca é uma opção, que a vida pode ser penosa, mas mais cedo ou mais tarde, a esperança espreita e surge no final do caminho. “Nunca percam a vontade de lutar e de procurar um amanhã melhor.”

Maria Luísa Louro - 82 anos

“Chamo-me Maria Luísa Louro, tenho 82 anos e o meu aniversário é no dia 25 de abril. Nasci em Lisboa, vivi na Avenida 24 de julho, mas depois casei e fui viver para Almada. A minha mãe trabalhava numa fábrica de conservas de atum e o meu pai trabalhava numa lota, então peixe não faltava em nossa casa. Acho que é por essa razão que hoje em dia não aprecio atum.”

Maria Luísa é uma senhora de pequena estatura e olhar meigo, que facilmente se emociona ao recordar o passado. Tinha cinco irmãos, mas agora só lhe resta uma irmã e os seus dois filhos, afirmando carinhosamente que o mais velho é um amor e que o mais novo é muito brincalhão.

Infância e juventude

Desde pequena, Maria Luísa viu de perto as consequências profundas de uma sociedade marcada pelas desigualdades sociais. Mulheres governadas por uma mentalidade patriarcal, consideradas seres inferiores aos homens, confinadas ao papel de cuidadoras domésticas e sem voz na esfera pública. Nas suas palavras: “Tive uma mocidade muito triste”, entre o medo constante que sentia ao assistir sobressaltada a episódios de violência doméstica por parte do seu pai, contrabalançado pela vontade e obrigação que sentia em defender a mãe.

Embora nunca tenha passado fome, guarda consigo memórias de manhãs passadas com os seus irmãos em longas filas de senhas de racionamento de alimentos, “(...) Como a minha mãe tinha cinco filhos, cada um ia para uma fila e apanhava um quilo de batatas, pão ou arroz".

Refere que nunca gostou muito de frequentar a escola e acabou por abandonar os estudos após a 3.ª classe, porque “(...) a professora, chamava-se Rita e era muito má, dava com a régua com toda a força na nossa mão e batia com uma cana na cabeça. Mesmo que estivéssemos longe, chegava lá”.

Contou-nos que nunca sonhou com uma profissão em particular. No entanto, tinha a determinação necessária para trabalhar arduamente, de forma a amealhar dinheiro para abrir o seu próprio negócio. Desta forma, começou cedo a trabalhar como costureira.

Vida adulta

Casou aos 25 anos com um alentejano, caixeiro-viajante de profissão, e foi viver inicialmente para Almada. Posteriormente, mudou-se para a zona de Aveiro, ficando mais perto dos seus pais, que já se encontravam reformados e voltaram às suas origens, residindo na Costa do Valado.

Maria Luísa finalmente ganhou coragem para abrir o seu próprio negócio, uma fábrica de tapetes e chapas de matrícula. Alheia ao facto de que o seu marido ficara durante anos com o dinheiro de clientes e não pagava aos fornecedores, Maria Luísa descobriu também a traição com outra mulher, tendo ainda a sua privacidade e reputação injustamente questionadas, ao ser chamada a tribunal por incumprimento de obrigações financeiras. Hoje, reflete com mágoa que teria sido melhor nem ter casado, pois ficou com dívidas e viu a sua vida desmoronar ao perder a sua casa. Contudo, foi no seu papel de mãe que encontrou forças para trabalhar como empregada doméstica e sustentar os filhos.

Vida antes do 25 de abril

Maria Luísa viveu os seus anos de jovem mulher marcados pela limitação de liberdades individuais, em que o Estado Novo controlava estritamente a sociedade, a política, a economia e a cultura, reprimindo qualquer forma de oposição política. Contou-nos que guarda algumas memórias desse tempo e, ainda que não compreendesse completamente a razão pela qual a sociedade era censurada dessa forma, tinha consciência de que não podia falar abertamente, que algumas pessoas iam presas de um dia para o outro e que havia quem se encontrasse à escuta nos cafés e nos mercados. Maria Luísa relembra que procurou sempre desviar-se de sarilhos e de pessoas que mantivessem uma postura de revolta contra o regime ditatorial. Também tinha consciência que o papel do homem e da mulher eram diferentes, “Os homens não queriam que as mulheres trabalhassem, queriam que ficassem só em casa. (...) Quer dizer, a minha mãe sempre trabalhou. Tinha cinco filhos, por isso precisava de trabalhar. Eu também trabalhei muito, não fiquei em casa só com os filhos”.

O dia 25 de abril

Quando o dia 25 de abril chegou, para ela foi uma surpresa, pois não contava com nada do que sucedeu. Nesse dia, recorda-se que estava recolhida em casa com um ataque de bronquite, doença que a atormentava muito em jovem. Ouviu na rádio o relato de tudo o que se passava, onde se aconselhava à população que não saísse de casa. Os camiões de guerra encontravam-se junto do quartel onde o presidente Marcello Caetano se refugiou e rendeu depois das forças comandadas pelo capitão Salgueiro Maia terem sitiado o local.

O legado da Revolução

Maria Luísa recorda o impacto que esta data teve na sua condição feminina, influenciando o posterior percurso da sua vida. Com o 25 de abril, abriram-se as portas para a luta pela emancipação feminina e pela igualdade de género. Esta mudança legal permitiu às mulheres libertarem-se de casamentos infelizes ou abusivos e assumirem um maior controlo sobre as suas vidas. Maria Luísa, tendo bem presente o exemplo de vida da sua mãe, tomou as rédeas do seu futuro: “Quem pediu o divórcio, fui eu. A minha mãe também sofreu muito por ficar presa num casamento onde não era feliz. Quando a minha mãe o deixou, coitada, já estava farta. A minha tia disse que aquilo não podia continuar e levou-a para casa dela. O meu pai ficou sozinho, começou a ficar doente e acabou por morrer”, disse-nos com alguma tristeza no olhar.

Conselho para as Mulheres de “hoje”

Refletindo na sua história de vida, considera que percorreu um caminho repleto de adversidades, que superou graças à sua dedicação. Hoje conta com os seus dois filhos e com a liberdade, que é um bem muito precioso. Quando lhe pedimos um conselho diz-nos, simplesmente: “Desencorajo qualquer mulher a perseguir um homem. A mulher não pode ficar presa num casamento infeliz”.

Maria Manuela Marques - 65 anos

“Chamo-me Maria Manuela, tenho 65 anos e moro em Aveiro. Entrei em Química Alimentar em Aveiro e terminei o meu curso, já casada e com filhas. Fui assim apanhando várias pessoas de vários anos, e por isso é que conheço tanta gente! Trabalho na Universidade de Aveiro, no Departamento de Química, há 25 anos. Sou técnica de laboratório e responsável pelos laboratórios do primeiro ano.”

Maria Manuela é uma senhora com um espírito eternamente jovem, muito despachada e de gargalhada contagiante. Nos seus tempos livres, gosta de dar umas “passeatas”, como diz, e de cozinhar, contando-nos que teve sempre muito jeito para fazer bolos. O seu gosto pela cozinha começou logo na sua juventude; costumava fazer bolos por encomenda e as pessoas pagavam-lhe em géneros ou em peças para o seu enxoval, que ainda hoje estão por estrear. Encontrou no pilates uma forma de levar o seu dia a dia com mais serenidade.

Infância e juventude

Maria Manuela considera que teve uma infância feliz. O seu pai era vendedor de automóveis em Aveiro e a sua mãe era doméstica. Tinha uma irmã e viviam em Eixo, localidade onde também frequentava a escola. Recorda que ia a pé, cerca de 1,5 km, porque não havia praticamente trânsito e naquela altura não existiam tantos perigos como atualmente. Para a escola, ia bem depressa, mas para casa é como diz: “(...) vínhamos devagar, íamos parando na brincadeira e chegávamos à hora que chegássemos.”

Desde pequena que sempre foi muito despachada. Ao contrário da sua irmã, que gostava mais de ler, Maria Manuela queria fazer tudo e nunca estava sossegada. O seu avô tinha uma padaria e ela costumava ser a moça dos recados; qualquer coisa que fosse preciso - ir ao talho, à farmácia, a uma loja - desde que fosse em Eixo, pegava na bicicleta e lá ia a Maria Manuela!

Guarda ainda memória das férias que passava perto de Almodôvar, terra da sua mãe, onde visitavam a restante família uma vez por ano, tradição que ainda mantêm até hoje. Tinham uma casa grande com muito espaço à volta, onde era sempre muito feliz a passear no seu monte alentejano. “(...) Ainda tenho cheiros daquela lenha a arder e das torradas feitas nas brasas da lareira da cozinha”, diz-nos Maria Manuela com muito carinho.

Quanto à escola, também tem algumas recordações. Lembra-se de comer na cantina, o que não era nada do seu agrado. Relembra que era costume darem às crianças uma colher de óleo de fígado de bacalhau antes de comerem a sopa, que geralmente era de feijão. No Natal, enfeitavam a cantina, faziam aletria e davam um copinho de vinho do Porto ou abafado, conta-nos entre risos.

Maria Manuela não considera que a sua professora, de seu nome Celeste, tenha sido muito rígida, mas tal como era comum naquela época, existiam hábitos e costumes que eram obrigatórios e não se ousavam desafiar. Na sala de aula a fotografia de Salazar estava sempre presente, havia ainda um crucifixo pregado na parede, rezavam, cantavam o Hino Nacional e usavam uma bata. Recorda-se que aos 10 anos, quando estava na 4.ª classe, foi sozinha de autocarro fazer o exame nacional na escola da Glória. Levava na mão uma saca de pão, para exemplificar os seus dotes de ponto de cruz, e na cabeça toda a matéria, acerca dos rios e dos caminhos de ferro de Portugal.

Revela ainda que o largo onde o seu avô tinha a padaria era a zona mais movimentada da altura, onde todos se deslocavam de bicicleta e de comboio, no famoso Vouguinha, quando queriam ir até à cidade de Aveiro.

Quando reflete sobre as condições de vida naquele tempo, Maria Manuela diz-nos: “(...) Eu não sei como é que a gente vivia com tanto frio. Mas o que é certo é que vivíamos, porque não havia aquecimento, só havia lareira. E agora penso: “Mas eu tinha assim tanto frio?” Não tinha, eu ia para a cama cedo com a botija de água quente”.

Quando lhe perguntámos acerca dos namorados, riu-se e disse-nos que não era muito disso. Começou a namorar com 15 anos com um rapaz mais velho que era de Santarém, mas que estudava em Aveiro. Encontravam-se habitualmente no café na avenida, “(...) era assim o nosso namoro. Às vezes dava umas escapadinhas, mas fora isso era no café”. Os pais não sabiam, mas curiosamente a avó era a sua confidente, “(...) A minha avó não se importava com essas coisas, as avós têm sempre mais compreensão“. Como muita coisa na vida, o namoro também terminou, e por vezes quando se viam, seguiam em lados opostos da estrada, envergonhados.

Vida adulta

Mais tarde, já depois do 25 de abril, veio a conhecer o seu marido em Coimbra, quando ingressou no curso de Engenharia Química. Recorda os seus tempos de estudante e a casa em que vivia: número 82 da Avenida Sá da Bandeira. No primeiro andar viviam as meninas, com a senhoria D.ª Joaquina, e no segundo andar os rapazes, “(...) mas de vez em quando havia algumas misturas”, diz-nos a rir-se. Entretanto fez uma pausa nos seus estudos, casou com 26 anos e teve duas filhas. Mais tarde, não querendo deixar incompleta a sua formação, pediu equivalência para a Universidade de Aveiro para o curso de Química Alimentar.

Vida antes do 25 de abril

Relativamente ao ambiente que se vivia nessa época na zona onde residia e estudava, Maria Manuela e a sua família não tinham muita noção do que se passava. Mas, anos mais tarde, já em partilha de histórias acerca da sua juventude com o seu marido, conta-nos que na terra dele, na zona da Lousã, “(...) já andavam lá uns homens que eram de esquerda, contra o regime. E ele, garoto, às vezes estava no café e diziam: “Não se pode falar, olha que depois vais preso.” E ele que pensava: “Mas que estranho, não se pode falar porquê?””. Isto porque, na terra do seu marido, havia um homem que era da PIDE. Contou-lhe o seu marido que quando aquele homem entrava no café, se sentia uma mudança no ambiente, e de certa forma as pessoas reconheciam-no como alguém “diferente”. Diferente na forma de vestir, sempre muito aprumada; diferente na postura, pelo sítio onde se sentava, parecendo que estava sempre à escuta. O seu marido, ainda muito novo, só entendeu tais comportamentos e o seu significado depois do 25 de abril. Na terra dele (Góis), que até era uma localidade pequena, já existiam pessoas que faziam tertúlias e era tudo combinado através de sinais e alcunhas. Algumas pessoas até já tinham sido presas. Ainda assim, Maria Manuela diz-nos que, de certa forma, era normal as pessoas não terem absoluta noção que poderiam existir outras escolhas ou formas de pensar para além daquilo que era instruído pelo regime da ditadura.

Nos anos que precederam o 25 de abril, Maria Manuela era aluna externa no colégio de freiras Sagrado Coração de Maria, na Avenida Lourenço Peixinho, o que significava que o frequentava apenas durante o dia, regressando a casa no final das aulas. Lembra-se que era um edifício grande, com muitas janelas, e que as raparigas gostavam de ver os rapazes que passavam na avenida. Do outro lado do colégio havia um fábrica de fundição e os trabalhadores juntavam-se do lado de fora para falar e acenar às raparigas, mas elas não podiam abrir as janelas porque as freiras tinham colocado pregos, já para as impedir de “(...) mostrar as pernas para a avenida”, conta Maria Manuela entre risos. Recorda também as idas à missa e que lhe ficou na memória umas meninas mais velhas que já fumavam, mas às escondidas, atrás de uma figueira.

Felizmente, relembra que ninguém da sua família foi para a guerra, mas tem memórias de quando os rapazes da terra voltavam do Ultramar. As pessoas reuniam-se em peso e faziam grandes festas para os receber. O seu marido, por outro lado, nasceu em Angola depois dos pais terem emigrado para lá. Trabalhavam na roça de café, a sua sogra estava em casa a cozinhar e o seu sogro era capataz. Contou-nos que no início dos anos 60 já começavam a surgir algumas rebeliões e o seu marido esteve para ser morto em pequeno. A sogra de Maria Manuela, com medo, trouxe o filho para Portugal para viver com a avó. Como consequência, o marido de Maria Manuela acabou por conhecer a sua mãe apenas com 10 anos, quando os pais regressaram definitivamente a Portugal depois do 25 de abril, como retornados.

O dia 25 de abril

No dia 25 de abril de 1974, Maria Manuela tinha 15 anos e recorda-se de estar no colégio de freiras e de ter sido mandada para casa, porque se tinha passado alguma coisa em Lisboa, mas não sabiam o quê. Quando chegou a casa, estavam a ouvir o rádio e diziam: “Mas o que se passa? Uma revolução?”, sem entenderem bem o sucedido. Passados alguns dias, começou a passar na televisão o que realmente tinha acontecido. Começou a falar-se no regime de Salazar e de Marcello, dos capitães de Abril reunidos no Largo do Carmo e dos cravos. Maria Manuela só viria a entender o sucedido mais tarde, na disciplina de “Introdução à Política”, no seu 7.º ano de escolaridade.

Pós 25 de abril

Guarda ainda na memória a primeira vez que foi votar: “(...) As pessoas iam cedo para votar, eram filas e filas, agora se iam votar em consciência também não sei. Mas era novidade, e muitos iam votar pelo que ouviam na igreja ou pelo que alguma pessoa mais influente falava. Não havia formação política”.

Na sua opinião, em Aveiro as pessoas não sentiram uma diferença tão significativa como as que moravam em áreas mais ruralizadas e desprivilegiadas, como no Alentejo. A pobreza era maior e o povo trabalhava para os grandes latifundiários, sempre debaixo da sua alçada; tinham uma vida muito dura, a qual mudou significativamente após o 25 de abril.

O legado da Revolução

Considera que o maior legado do 25 de abril foi, pura e simplesmente, a liberdade de expressão. Infelizmente, não se fez à mesma velocidade em todo o país, continuando a existir zonas com maior resistência à mudança. Apesar de tudo, as condições de vida melhoraram significativamente, principalmente no acesso a direitos básicos como a saúde ou educação. Deu-nos o exemplo que na sua aldeia, apenas ela e a irmã conseguiram ter posses para estudar, muito devido ao trabalho do avô, com o seu pequeno comércio, o que demonstrava bem as dificuldades que a maioria das pessoas sofria. Ainda hoje quando vão à sua aldeia são muito bem recebidas e ficaram para sempre conhecidas como a Nelinha e a Fatinha, “(...) daqui a pouco com 70 anos ainda somos as “inhas”, disse com uma expressão alegre.

Conselho para as Mulheres de “hoje”

Os tempos mudaram, por isso considera que é muito importante ter uma mentalidade aberta e não sermos muito rígidos na forma de pensar, pois quantas mais experiências tivermos, mais oportunidades poderão surgir.

Quando lhe pedimos um conselho para as jovens mulheres, Maria Manuela diz-nos que acha que nasceu muito cedo para a época: “(...) sempre fui muito à frente”. O seu carácter independente, mais maduro e muito despachado contribuiu para a sua grande ânsia de viver, por isso aconselha-nos a não parar: “(...) Não tenham medo, é avançar nos desafios. Ganhamos sempre com os desafios, não é?”

Agora, tem consciência que os tempos ditaram as vontades e a falta de oportunidades condiciona o futuro, por isso com um misto de entusiasmo e algum arrependimento, diz: “Façam mesmo aquilo que gostam. Se eu tivesse a vossa idade agora, tinha tirado o curso de enfermagem, que era aquilo que eu gostava. E não tirei por pensar que era velha aos 31 anos. Havia de ser parteira, de trabalhar nos hospitais, nas clínicas, nos cruzeiros, ou de dar aulas de parto. Eu havia de ser o fim do mundo!”

Rosa Gadanho - 69 anos

“Chamo-me Rosa Gadanho, sou de Aveiro - da União das Freguesias de Glória e Vera Cruz - e faço 70 anos em abril deste ano. Estou aposentada, mas serei sempre professora. Atualmente faço voluntariado no estabelecimento prisional de Aveiro, integrando a gestão da biblioteca.”

Uma mulher generosa, destemida, com um espírito livre e uma vontade de marcar pela diferença. Embora o regime ditatorial tenha passado algo despercebido, por ser a única realidade que conhecera até então, nunca foi de seguir cegamente as normas. A sua sede de justiça e de igualdade levou-a a quebrar as regras mais do que uma vez, a seguir os seus instintos e os seus sonhos.

Infância e juventude

Fruto de uma reconciliação que não resultou, viveu maioritariamente com a mãe, costureira de profissão, que a criou e lhe deu a oportunidade de ter uma educação superior.

Viveu em Aveiro até aos 8 anos, altura em que se mudou para a aldeia de origem da sua mãe, em Albergaria. Aí permaneceu durante um ano e meio, habitando numa casa onde havia eletricidade, mas não água. Como tal, recorda com nostalgia a alegria de atividades simples como ir buscar água. Apesar de ser uma tarefa obrigatória dada a falta de abastecimento, a ida à fonte, com um regador ou com um cântaro, proporcionava diversão por ser necessário movimentar uma roda para que a água saísse.

A mudança para a aldeia deu-lhe a conhecer uma realidade muito diferente daquela que conhecera na cidade, e, embora não considere que tenha tido uma infância infeliz, as experiências vividas incutiram-lhe, desde cedo, grande consciência social. Recorda crianças com abdomens inchados, higiene deficitária e frequentemente apenas com uma peça de roupa. “As pessoas trabalhavam desalmadamente, principalmente no verão. Os dias começavam muito cedo e acabavam muito tarde.”

O papel da maioria das mulheres era o de confecionar as refeições e levá-las em cestos, transportados à cabeça, às pessoas que trabalhavam no campo. Relembra também o cheiro que os cestos deixavam: “(...) são memórias que ficaram comigo”.

Relativamente à educação, afirma ter gostado mais da escola da aldeia do que daquela que frequentara na cidade. Em Aveiro tinha uma professora agressiva, que batia, gritava e tratava mal os seus alunos, e Rosa era bastante reativa a essas atitudes. A sala estava organizada em 3 filas “(…) os bons, os mais ou menos e os fracos”. Assim, aqueles que eram considerados bons alunos eram permanentemente privilegiados. A fila dos mais fracos era composta quase exclusivamente por meninas de um bairro da região – a ilha do Lé. Esse bairro, que atualmente já não existe, situava-se junto à Sé de Aveiro, onde um portão o separava da cidade. Aí, habitavam famílias de forma geral muito numerosas, em pequenas casas justapostas, muitas das quais tinham apenas um quarto onde dormia a família toda. Nesse bairro a vida era diferente, com muitas dificuldades sociais, e a professora enfatizava essa desigualdade. Na aldeia tinha uma professora mais compreensiva, que tratava todos de igual forma.

No entanto, Rosa demonstra uma atitude empática face à sua primeira professora, embora não considere que ela fosse correta, relembrando que as mulheres iniciaram o seu percurso na docência muito mais tarde que os homens e sentiam a necessidade de se impor. A postura rígida era uma via para mostrarem o seu valor e a sua capacidade; uma forma de se equipararem aos colegas do sexo masculino.

Após esse ano e meio, Rosa e a sua mãe regressaram a Aveiro, para que ela pudesse continuar a sua formação.

Ingressou na escola comercial, por ser a opção que mais rapidamente lhe iria proporcionar um emprego. No entanto, tinha o sonho de ser professora de Educação Especial. Tinha conhecido algumas pessoas com deficiências em casas de familiares, na aldeia da mãe (na escola não, porque não a frequentavam), e isso tocou-a particularmente. Por isso, aos 14 anos, expôs o seu objetivo à diretora da Associação Portuguesa de Deficientes Mentais e questionou-a acerca do melhor modo para o alcançar. Estabeleceu, assim, um contacto mais próximo com a diretora, que a ajudou ao longo do seu percurso académico. Após 4 anos de espera, foi para Lisboa para fazer uma formação de 3 anos. Pelo 25 de abril de 1974 estava no primeiro ano de magistério.

O dia 25 de abril

Rosa não tinha uma visão clara do regime em que vivia, pois não conhecera mais nenhum. Não tinha consciência das músicas ou livros proibidos na época. No dia 25 de abril de 1974, não percebeu a importância do que estava a acontecer em Lisboa, e do impacto que teria na sua vida. Havia regressado de uma visita de estudo a Braga e tinha de se apresentar pelas duas da tarde no magistério. “Disseram-me, quando cheguei, que estavam a acontecer alterações no país; para ir para casa e aguardar novidades.” Também a sua mãe percebera que algo se passava. “A minha mãe disse-me: está qualquer coisa a acontecer em Lisboa porque a rádio só passa música.” Mas Rosa, uma mulher curiosa, não acatou as ordens e foi para as imediações do quartel, na Rua do Carmo, para tentar ver as movimentações dos guardas e perceber o que estava a acontecer. Infelizmente, a ausência de acontecimentos suspeitos conduziu à sua tomada de decisão de regressar a casa.

Rosa só viria a perceber passados alguns anos que, na sua vida, a revolução tinha sido iniciada muito mais cedo. Tivera dois professores marcantes: um de História e Geografia e outro de Português. O seu professor de Português tinha-lhe falado de autores e obras considerados proibidos, sem que tivesse referido essa transgressão. Já o professor de História e Geografia costumava fazer uma ligação entre os acontecimentos e os locais onde ocorriam, o que mais tarde lhe serviu de referência para entender temáticas como o colonialismo e a escravatura.

Relativamente à Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), a única referência que tem é a de passar por um congresso democrático na rua e ver uma movimentação diferente do habitual, mas não lhe deu grande importância. Relembra-se de uma assembleia de Carnaval realizada em Ílhavo, na praia da Barra, e do controlo apertado que houve: das pessoas que iam e dos respetivos acompanhantes. No entanto, aos seus olhos, tudo eram procedimentos normais: “(...) nem levantava questão em relação a isso”.

Conheceu o seu marido muito depois do 25 de abril de 1974. Aliás, Rosa não se entregava facilmente ao amor, pois encontrava alegria na companhia do seu grupo de amigos. Gostava das suas atividades habituais, sendo, por exemplo, frequente juntarem-se numa garagem para conviverem e dançarem.

O que as mulheres não podiam fazer

O seu espírito de rebelião manifestou-se mais uma vez aos 14 anos, quando começou a fumar: “(...) as mulheres que fumavam eram consideradas de mau porte e eu achava essa discriminação terrível (...) eram as minhas próprias revoluções”. Também no vestuário se destacou: a mãe recusava-se a fazer-lhe calças por pensar que não era uma peça adequada a mulheres. Realça que esta atitude protetora e rigorosa da mãe se devia muito ao facto de viverem apenas as duas e de querer evitar mexericos. Mas Rosa, de espírito livre, trabalhou de forma a ganhar dinheiro e encomendou as suas primeiras calças… a um alfaiate! Nisso identificava-se com a sua sogra, que dizia ser uma das primeiras mulheres em Aveiro a usar calças.

Pós 25 de abril

Rosa não entendia o discurso político que estava a ser transmitido à população naquela altura nem conseguia estabelecer relações entre os factos. Sabia apenas que o seu mundo estava a mudar e queria saber o motivo. No 2.º ano do seu magistério houve uma grande mudança entre os professores; vinham com outra visão do mundo, que lhe abriu os horizontes. Foi quando os pais se começaram a envolver e a fazer intervenções nas escolas pela falta de condições. “(...)Toda a gente queria fazer parte da política, saber da política, até romantizar a política, distinguir o bem e o mal era muito complicado. Íamos muitas vezes à biblioteca tentar procurar e entender as coisas (...).” Confessa ainda que não havia ninguém que não conhecesse pelo menos uma pessoa que tivesse morrido na guerra ou que tivesse voltado em muito mau estado. “(...)Uma das grandes esperanças com o 25 de abril era o fim da guerra do Ultramar(...).”

Para quem teve de regressar a Portugal foi um período difícil, “(...) perderam qualquer posse que tivessem conseguido angariar, tiveram de começar a vida de novo e as garantias em Portugal eram muito tremidas (...)”. Viu regressar aqueles que lhe eram mais próximos e que tinham uma vida boa lá fora, só para chegarem a Portugal de mãos vazias. As mulheres que vieram de África estavam habituadas a viver de uma maneira diferente da portuguesa, mais livre. “(...) De repente viram-se obrigadas a ficar em casa de um parente que nunca viram e que vivia com xaile e lenço, em Trás os Montes; e elas apenas com uma blusa às flores. Era complicado, mas foi-se ultrapassando, no dia a dia.”

Vida adulta

Rosa sentia que “estava tudo a acontecer” e queria muito participar. Uma das primeiras formações que fez foi o curso de alfabetização - do método Paulo Freire -, para poder trabalhar com pessoas analfabetas, que constituíam uma percentagem ainda considerável da população. Foi pioneira também nesse âmbito e deu formação em vários locais como a Câmara ou a Guarda Nacional Republicana (GNR) - onde quer que a chamassem.

No seu primeiro ano de trabalho como professora, ficou colocada em Vale de Cambra, numa aldeia recôndita, onde pouco tempo antes, quem mandava eram o padre e a professora, mas que ainda não tinham deixado de exercer os seus poderes (nem queriam). Aliás, tal como nos disse, “(...) a revolução não chegou a todo o lado ao mesmo tempo”. Foi um ano muito duro, recebendo “bilhetinhos” diários da outra professora da mesma sala, com a qual não se cruzava, com notas sobre a falta de limpeza do chão ou as marcas de dedos nos vidros. Para lidar com a situação, contou-nos, com divertimento, que comprou um espigão e ia colocando os papéis que recebia: “(...) para a senhora saber que eu guardava aquilo”. Nessa escola existia uma biblioteca com livros infantis fechados num armário com uma rede: “Eu ousei perguntar como é que podia por aqueles livros à disposição. Não me puseram fogo porque não calhou, mas os livros não eram para mexer porque se podiam estragar”. Os invernos fora do litoral são também mais rigorosos e o único aquecimento que a escola tinha era um fogão de ferro preto. Havia crianças que andavam 10 quilómetros por dia para ir à escola, independentemente das condições meteorológicas, pelo que muitas vezes chegavam molhadas e tinham mais frio. Pediu aos pais, atempadamente, que fossem enviando lenha para que, no inverno, pudessem aquecer-se. No entanto, numa manhã deparou-se com a lenha toda queimada, porque, alegadamente, iria sujar o fogão.

No ano seguinte, aos 21 anos, foi para a Murtosa, dar aulas ao 1.º ano e percebeu que havia crianças que faltavam constantemente. Ao investigar a situação, entendeu que a professora que lhe havia antecedido não permitia que as crianças entrassem na sala descalças. Assim, quem não tinha dinheiro para comprar sapatos, nem sequer ia. Rosa não concordava com essa posição, pelo que permitia que todos pudessem entrar na sua sala. Ouviu muitas críticas como: “(...) andaram-se a impor regras durante tanto tempo e agora vem uma garota e estraga isto tudo”.

Uma das quatro primeiras bombeiras em Aveiro

Em 1978 ficou a fazer substituições - quando não tinha escola atribuída, era colocada na Direção Escolar a fazer trabalho administrativo e, quando era necessário substituir alguém, entrava ao serviço como professora. Nesse ano, tendo ficado por Aveiro, não necessitava de fazer grandes deslocações, pelo que começou a fazer formação na Cruz Vermelha. Inicialmente, o objetivo era concluir um curso de Primeiros Socorros - para se conseguir desenrascar perante uma situação de urgência. No entanto, acabou por ser convidada, tal como outros elementos que fizeram a formação de Primeiros Socorros, para fazer a formação de formadores e, assim, passar a ser monitora. Como era professora, até fazia sentido: a componente pedagógica estava garantida, só faltava a parte mais técnica. Confidenciou-nos que nunca teve medo de se aventurar e que, por isso, a sua mãe acabou por sofrer; tinha desgosto por Rosa nunca ter construído um enxoval. A formação durou cerca de seis meses e fizeram estágio em ambulâncias e no serviço de urgência do hospital.

No entanto, o trajeto não foi sempre linear. O serviço nacional de ambulâncias estava atribuído a uma corporação de Bombeiros e, tendo feito o estágio nessa corporação, assumiu, bem como as outras três colegas que fizeram a formação consigo, que se deveriam apresentar lá.

“Foi-nos dito que não queriam lá saias.” Aparentemente não tinham podido recusar o estágio, mas não as aceitariam após o término da formação. Ficaram muito revoltadas, mas agiram com classe. Foram oferecer os seus conhecimentos à outra corporação de bombeiros, que as recebeu muitíssimo bem. Existiam algumas condicionantes estruturais, porque nunca tinham recebido mulheres: não tinham um espaço próprio para mudar de roupa (tinha de ser na casa de banho); para elas não era uma novidade, porque já durante o estágio se tinham apercebido destas limitações. Não estavam preparados e, pelos estatutos, não podiam empregar mulheres. Permitiram que ficassem imediatamente ligadas e integrassem o serviço auxiliar, expondo a situação à Liga para que posteriormente fosse possível mudar os estatutos. Estes serviços auxiliares existiam para que, quando houvesse grandes catástrofes, como por exemplo, incêndios, se requisitassem mais pessoas. Aceitaram estas condições, uma vez que o que realmente lhes importava era colocar em prática o que tinham aprendido. Assim, fizeram a recruta - às sextas-feiras à noite - e nunca quiseram dar motivos para serem tratadas de forma diferente. Tinham uma posição a manter e não iriam mostrar fragilidade ou pedir tratamento especial. Mostraram desde o início que queriam ser tratadas da mesma maneira e esse desejo foi respeitado. Refere ainda que todos aqueles bombeiros e recrutas eram pessoas generosas e que estavam lá com a nobre missão de servir os outros.

O restante tempo que passou na corporação decorreu normalmente, indo quando tocava a sirene, se fosse necessário. Confessa que tinha receio de não conseguir lidar com algumas situações, mas que aprendeu a não sofrer por antecipação: “Não vale a pena, quando chegas lá, ou dá ou não dá. Se caíres para o lado, cais”.

Foi também pela altura em que embarcou na Cruz Vermelha que, com um grupo de amigos, fundou o Teatro Arlequim, um projeto de teatro para a infância. Começaram em Ílhavo e mantiveram-no durante alguns anos. Quando o grupo terminou acabaram por se distribuir por outros projetos, tendo Rosa integrado o Círculo Experimental de Teatro de Aveiro (CETA). Também nesse projeto o seu foco eram as crianças, trabalhando essencialmente na encenação de trabalhos para a infância.

Ao contar-nos todas estas experiências chega a uma conclusão engraçada: “Realmente, eu nunca estive parada”.

O legado da Revolução

Sem negar uma certa desilusão face ao estado atual do país, Rosa usa o mote da canção “Liberdade” de Sérgio Godinho para nos introduzir aquilo que considera serem os legados do 25 de abril de 1974: “a paz, o pão, habitação, saúde, educação”.

Começando pela saúde, realça a grande conquista que foi a criação do Serviço Nacional de Saúde, mas lamenta que seu estado atual pouco se assemelhe à essência da sua criação. Inicialmente, pretendia-se que toda a gente tivesse acesso à saúde, independentemente da sua condição económica. Refere que embora nunca tendo sido ideal, sendo a perfeição muito difícil de alcançar, a situação já foi muito melhor do que a atual: “(...) estas coisas devem ser no sentido ascendente e quando começamos a vê-las no sentido descendente dói muito”.

Relativamente à questão da educação, Rosa realça que as respostas atuais são completamente diferentes das de antigamente. Como professora de educação especial, valoriza o direito recentemente conquistado por crianças com estas necessidades de frequentarem instituições de ensino. No entanto, questiona se foram realmente criadas as condições necessárias para que essas crianças possam usufruir desse direito, concluindo, com mágoa, que não. Foram criados cursos, mas atualmente as escolas não dispõem de recursos humanos que respondam às necessidades específicas. “Isto reflete-se nas condições de vida das famílias, que deveriam poder confiar os seus filhos à escola para determinadas intervenções e a escola não tem essas condições para oferecer, por muito que seja o esforço das pessoas que lá trabalham. E deve-lhes ser feita justiça porque os professores de educação especial esforçam-se muito para que os alunos tenham uma vida igual à dos outros, mas está cada vez mais longe.”

Passando à habitação, realça a dificuldade que os jovens têm atualmente de sair de casa dos pais: “(...) os que conseguem não ganham o suficiente para poderem ter a sua habitação”.

No que respeita ao pão, entende-o num sentido lato: faltando umas coisas, faltam também as outras.

Por último, a paz. Num mundo globalizado diz-nos: “(...) a paz é mais ou menos como o bom senso: está em falta. Eu acho que nós não olhamos uns para os outros com olhos de olhar. Quando a imagem é má, nós sacudimos para o lado, eliminamos, para podermos viver um bocadinho mais descansados”.

Deixa, por fim, a reflexão: “E será que isso é descanso? O que é que vai acontecer às pessoas que vêm a seguir a nós: os nossos filhos, os nossos netos? O que é que nós temos feito a este pobre planeta? O que é que lhes vamos deixar: dinheiro no banco? Jóias para usarem? Um mundo completamente poluído. Um mundo onde os interesses financeiros prevalecem sobre tudo e sobre todos”.

Conselho para as Mulheres de “hoje”

“As jovens mulheres têm hoje algumas oportunidades que foram criadas ao longo destas últimas décadas, mas ainda há muito caminho a percorrer. A minha mensagem é: continuem! Não se deixem convencer com estas ilusões de que temos tudo na mão; sabemos para onde queremos ir, sabemos exatamente qual é o caminho. O caminho tem de se ir fazendo todos os dias. Os escolhos são muitos e nós temos que os ir afastando, mesmo que não consigamos afastá-los todos. Eu acho que as mulheres juntas são muito importantes, mas tem de haver equilíbrio, para que não se criem facções. A mistura é importante (...) quando é para agir e mudar coisas temos de estar todos juntos - homens, mulheres - todos a olhar para o mesmo lado.”

Zita Leal - 85 anos

“Chamo-me Zita Leal, tenho 85 anos e vim de Peniche, também uma terra de mar no distrito de Leiria. A minha vida teve início na PIDE”.

Desde muito cedo, Zita Leal foi apresentada aos desafios que moldaram o seu caráter e a sua jornada. Criada nas proximidades da Fortaleza de Peniche, um dos mais odiosos símbolos da repressão fascista, diz que a vida muitas vezes reserva sincronias que prefere interpretar como simples acasos. Quando tinha apenas três dias de vida, a sua madrinha e a sua mãe levaram-na à Fortaleza, que era nessa altura uma prisão, para conhecer o responsável pelo local, que era também seu padrinho - o Tenente Marques. Embora, logicamente, não tenha memória desse evento, essa experiência foi certamente marcante. Quando soube do sucedido, a única coisa em que conseguiu pensar foi no que teria passado pelas mentes da sua mãe e da madrinha para levarem uma recém-nascida a uma prisão, ou como Zita diz, “à Fortaleza”.

Infância e juventude

Zita e a sua família mudaram-se de Peniche para a Figueira da Foz e, quando tinha apenas 4 anos, mudaram-se novamente, desta vez para Aveiro, onde o seu pai começou a trabalhar como empregado de mesa no Hotel Arcada. Naquela época, não tinha noção do que era a política, uma vez que ainda não existiam partidos. “Mesmo que existissem, uma criança de 6 ou 7 anos dificilmente compreenderia esses assuntos.” No entanto, guardou memórias afetivas daquele período, especialmente das noites em que ia buscar o pai ao trabalho. O trajeto incluía passar pela ria de Aveiro, onde se localizava o hotel, e esse momento era especial para ela. O aroma presente na avenida ainda hoje evoca lembranças e desperta emoções nostálgicas.

Recorda ainda o café histórico Trianon que foi, pelas suas memórias de criança entre os 5 e os 6 anos, o primeiro a instalar no frontispício lâmpadas néon coloridas. Apesar de saber conscientemente que não deve emitir nenhum cheiro em particular, ainda hoje, quando passa pela Avenida, parece que sente o odor de néon, e isso transporta-a para a pureza e inocência daqueles tempos. Também característico de Aveiro era o aroma doce a melão que os moliceiros, vindos de terras limítrofes, como Murtosa e Pardilhó, traziam.

Estas são apenas algumas das suas memórias de infância realçando que, embora tenha vivido noutros locais, as experiências verdadeiramente significativas aconteceram na cidade de Aveiro.

Zita recorda o período escolar com um misto de sentimentos. Frequentou inicialmente a Escola Básica da Vera Cruz, onde teve uma professora extremamente rígida. Naquela época era obrigatório o uso de bata para entrar na sala o que, por um lado, era benéfico porque evitava que as roupas se sujassem, servindo ainda para ocultar diferenças socioeconómicas “(...) era o tapa misérias (...)”. Contudo, não lhe parecia que esses fossem os verdadeiros motivos inerentes à imposição e, portanto, não lhe agradava a ideia de usar “uma farda”. Recorda o sentido de ordem e respeito que existia nos alunos, que se posicionavam em fila para entrar na sala sem ousar sequer conversar. Na divisão existia um crucifixo e duas imagens: uma de António de Oliveira Salazar e outra de Óscar Carmona, o Presidente da República vigente. Essas imagens sinistras que “(...) pareciam de um avô mau”, inspiravam mais temor do que reverência, evocando uma sensação de autoridade opressiva.

Embora existissem crianças com necessidades educativas especiais, explica que naquela altura eram classificados como ou espertos, ou burros. As meninas que tinham mais dificuldade em aprender iam para o fundo da sala, “para não chatear ninguém”, enquanto as melhores alunas ficavam à frente. Esta era uma situação que trazia desconforto a Zita, apesar de ainda ser uma criança inocente e de não saber bem o motivo pelo qual isto a incomodava. Tinha uma amiga chamada Ema, sua colega de carteira, que tinha dificuldade em aprender, porém sentava-se ao seu lado e não no fundo da sala. Na escola, as punições físicas como método disciplinar eram comuns, incluindo o uso de canas compridas e instrumentos de madeira, conhecidos como "meninas de 5 olhos". A sua colega de carteira era muitas vezes alvo desta punição por não conseguir realizar trabalhos com tanta facilidade e, por isso, tinha sempre as mãos inchadas. Zita ficava extremamente enervada com estas punições, por isso, sem que a professora percebesse, trocava rapidamente a mão da amiga pela sua, “(...) era a minha forma de ajudar”. A dor física causada é uma lembrança marcante da sua experiência escolar.

Aos 9 anos, esteve envolvida num incidente na escola, quando a professora a chamou para ir ao quadro ler uma frase. Tinha dificuldades de visão, embora não o soubesse e por isso não o conseguiu fazer. A professora acusou-a de estar a mentir, pelo que acabou por ser injustamente castigada, sendo obrigada a esticar a mão. Com isto, ao chegar junto da sua carteira, Zita reagiu impulsivamente, atirando o seu tinteiro cheio de tinta azul contra a professora, e fugiu da escola pela janela deixando até a sua sacola na sala. “Este foi o meu primeiro ato de rebeldia. Isto é impensável não é?”.

Contou-nos que no liceu era também dotada para as partidas: chegou a queimar o livro de ponto de um professor, costumava colocar pedras nos canos de escape dos carros dos professores que considerava mais maçadores e, inclusive, trepava árvores, algo inaceitável para uma menina. No entanto, como era inteligente, acabava sempre por conseguir contornar as represálias, ainda que o seu espírito “(...) mais que rebelde, selvagem (...)” permanecesse.

Sabia que não iria prosseguir os estudos porque os seus pais, com as simples profissões de empregado de balcão e costureira, não teriam dinheiro para os suportar. No entanto, no seu “7.º ano”, a sua professora de Moral perguntou-lhe se conhecia alguma menina interessada em continuar a estudar, em Lisboa, durante dois anos. De facto, o seu pai encontrava-se nessa altura a trabalhar na capital, pelo que Zita estava ao cuidado apenas da mãe. Informou a professora de que ela mesma estava interessada em ir. Tinha o sonho de ser assistente social, embora a sua mãe acreditasse que essa era uma profissão com um certo preconceito associado, dizia-se que eram as mulheres que se envolviam com diretores de fábricas. Apesar das preocupações da mãe, agarrou a oportunidade e partiu decidida para Lisboa no dia seguinte. Na estação do Rossio encontrou-se com uma senhora que a levou para um lar.

Deu por si a estudar numa escola pertencente à Mocidade Portuguesa Feminina, cujo caráter fascista ainda não entendia na altura. Acabou por ficar próxima de várias colegas e rapidamente percebeu que era a única rapariga a estudar naquele local que não era filha de alguém de uma classe superior; as outras meninas eram filhas de presidentes de câmara, de proprietários de empresas, ou em geral de famílias nobres abastadas, tendo por isso vivido uma realidade distante da dela.

Permaneceu na escola onde durante esses dois anos adquiriu uma vasta cultura geral, alcançando as melhores notas do seu ano. Diz que esses tempos, comparados com a sua restante vida de estudante, foram os que mais lhe proporcionaram aquisição de conhecimento e cultura. Hoje, compreende que o ensino da altura era o reflexo de uma sociedade de classes. As alunas que frequentavam a Mocidade Portuguesa eram escolhidas a dedo e, dada a origem das suas famílias, tinham os melhores professores do país a dar-lhes aulas. Após concluir o curso com excelência, Zita regressou a Aveiro com o desejado diploma nas mãos. No entanto, ao apresentar-se ao reitor para dar aulas no liceu local, descobriu que, mais uma vez, a sua posição social estaria a condicionar-lhe o futuro, podendo apenas lecionar disciplinas relacionadas com Desporto, Campismo ou Folclore, em vez das matérias que estudara e às quais tinha notas de excelência, incluindo Português, Francês ou História de Arte. “Acha que vou pôr a filha de um empregado de mesa a dar aulas de Teatro, Línguas ou História de Arte?”. Foi esta a frase que Zita ouviu por parte do reitor.

Vida adulta

Aos 19 anos, Zita começou a dar aulas de Educação Física. Apesar de não ser a disciplina que tinha idealizado lecionar, Zita sabia do seu valor enquanto professora e via nos seus alunos interesse e gosto pelas suas aulas. No seu círculo de amigos, a política e o Estado Novo não eram assuntos abertamente discutidos, nem tinha conhecimento da real situação em que vivia. Casou-se aos 22 anos após conhecer o marido num baile na Costa Nova e de namorar apenas por carta durante uns meses. Muito jovem e pouco preparada para essa nova fase da sua vida, sentiu-se profundamente entristecida com a pouca literacia que existia em relação a assuntos como a sexualidade ou a saúde feminina. Abertamente, recorda os momentos de dúvida que antecederam o seu casamento, mas também durante a vida em comum com o seu marido, reflexo da falta de educação feminina de que foi vítima. Reconhece que o seu marido sempre foi compreensivo e cuidadoso, permitindo que a intimidade e confiança entre os dois tenha florescido durante os vários anos que permaneceram casados.

25 de abril

Do dia 25 de abril de 1974, recorda-se de receber um telefonema do irmão a dizer que tinha ocorrido um golpe de Estado em Lisboa. Recomendou-lhe que fosse para casa e assim fez, transmitindo essa recomendação aos seus alunos também.

Logo após ter ocorrido a Revolução, o reitor informou Zita de que passaria a ter apenas a habilitação mínima, pois o seu curso tinha sido considerado “de orientação fascista”. Quanto ao grau, para si não lhe interessava muito - “(...) ser mais ou menos doutor, era igual”, o problema residia no facto de que, embora Zita continuasse a desempenhar as mesmas funções que os outros colegas de trabalho, receberia o salário mínimo. Indignada com a situação, dirigiu-se ao Porto para apresentar um protesto por escrito junto do Ministério, o qual não mostrou resultados positivos. Por isso, confessou-nos sobre a revolução: “Para mim, naquela altura, foi péssimo”. Incapaz de se resignar à sua situação, mais tarde, optou por fazer outro curso, um bacharelato de 4 anos em Francês-Português, desta vez na Universidade de Aveiro. O seu percurso profissional foi a chave que lhe faltava para conseguir compreender que a posição social de cada indivíduo era a grande condicionante da sociedade.

Hoje, refletindo sobre o 25 de abril, Zita percebe que apesar de muitas vezes ser descrito como uma revolução sem derramamento de sangue, houve, de facto, confrontos violentos, embora esses detalhes não fossem abertamente discutidos. “Diz-se que o 25 de abril foi feito só com cravos e sem sangue. É mentira, houve sangue, porque havia quem estivesse contra o 25 de abril, mas as pessoas não falam nisso”.

Depois do 25 de abril

Foi após a Revolução que Zita procurou incessantemente respostas para as suas questões, que se em jovem ainda não a atormentavam, foram posteriormente tomando forma.

Para Zita, o 25 de abril representou verdadeiramente a liberdade, especialmente a liberdade de expressão. Sente-se agora capaz de falar abertamente sobre qualquer assunto, “(...) antes seria impensável uma Zita qualquer estar a uma mesa a discutir política (...) hoje temos a liberdade na nossa mão”. Antes da revolução, as mulheres enfrentavam continuamente um maior escrutínio por parte da sociedade do que os homens, podendo ser facilmente apelidadas de adjetivos que em pouco ou nada refletiam o seu verdadeiro caráter.

As mulheres também não tinham ainda o direito ao voto e nem sequer consideravam essa possibilidade, resignando-se à sua condição inferior. Assim, o dia das eleições foi um momento de alegria e surpresa para Zita, sentindo-o como se de uma conquista pessoal se tratasse. Reconhecia-se como cidadã e detentora desse direito fundamental.

Uma das maiores mudanças sentidas foi a possibilidade de conversar aberta e francamente com as suas filhas, discutindo assuntos de “mulher para mulher” assim que chegaram à idade da adolescência, algo que a sua mãe nunca ousara fazer com ela. Em particular, recorda a sua ignorância sobre a menstruação, um tema crucial para a saúde e bem-estar das mulheres. Também por isso, esforçou-se por transmitir às suas três filhas todo o seu conhecimento acerca da sua condição feminina, para que não passassem pelas mesmas dificuldades que enfrentou - “(...) quis ensinar-lhes tudo o que podia sobre a vida!”.

Relembra ainda a importância do 25 de abril nos direitos da mulher dentro da própria casa. Ao longo da sua vida conheceu mulheres, algumas suas amigas, que sofriam de violência doméstica por parte dos maridos e que não tinham antes como escapar dessa realidade. Reflexo dos ensinamentos que se perpetuavam de geração em geração, tanto homens como mulheres acreditavam na subjugação e dependência das mulheres em relação ao seu marido. Recorda o próprio conselho do seu pai antes do seu casamento: “(...) Mesmo que alguma vez suspeites de traição por parte do teu marido, recebe-o sempre com um sorriso”. Ao que Zita prontamente respondeu: “Nunca na vida!”. Hoje, ainda sente a necessidade das mulheres em manterem-se firmes na sua posição e lutarem pelo que acreditam, mas também reconhece que há um longo caminho a percorrer na luta pelos seus direitos, especialmente no âmbito doméstico.

Reconhece o papel inigualável que as célebres 3 Marias (Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno) tiveram na construção do papel da mulher na sociedade. Autoras da afamada obra “Novas Cartas Portuguesas”, lançada em 1972, estas mulheres foram os rostos e vozes que deram um passo inaugural numa caminhada que tem sido feita até aos dias da atualidade, naquilo que é a igualdade de género nas diversas circunstâncias sociais, culturais, laborais e económicas. Esta obra veio a ser censurada três dias após o seu lançamento, e ainda levou a que as três autoras fossem chamadas a depor em tribunal, respondendo pelas sanções que lhes seriam imputadas (nas quais se discutia a própria prisão) e que só seriam levantadas com o alvor do 25 de abril.

O legado da Revolução

Hoje, com os seus 85 anos de sabedoria e repletos de lições que a vida lhe ensinou, afirma peremptoriamente, “(...) Aceito tudo, desde que as pessoas sejam felizes", fazendo questão de transmitir essa liberdade às suas filhas e netos.

Recordando tudo o que viveu, afirma convicta: “Sou uma mulher feliz. Sinto-me uma pessoa feliz. (...) Sou feliz na inquietação mesmo que questione tudo. Porque, para mim, o maior ganho do 25 de abril foi a liberdade. Se não houvesse liberdade, eu não podia dizer que não concordo”.

Custa-lhe bastante ouvir pessoas da sua idade falarem das saudades que sentem de Salazar. Não entende como é possível tal coisa, tendo em conta o caminho que percorreram até aos dias de hoje e as atrocidades que foram cometidas. Termina esta reflexão com um simples, mas poderoso: “Valeu muito a pena o 25 de abril”.

Conselho para as Mulheres de “hoje”

“Sejam mulheres a 100%, não se deixem subjugar a nada; não deixem que alguém vos subestime só porque são mulheres”.