Amélia Neves
Sento-me com Amélia, que me diz não saber o que dizer sobre si. Esta é uma história como tantas outras. Uma história com amor, com viagens, uma história de vida. E porquê contar esta em específico? Porque não contar esta em específico? É essa a questão que vos coloco. Em cada vida se encontra um livro à espera de ser lido, uma nova história para conhecer. E a de Amélia não é exceção.
Amélia está pelo Solar das Camélias há 7 meses, gosta muito de conversar com uma senhora que também por cá anda, diz serem boas confidentes. Desta vez, a companhia para conversa foi diferente, mas foi com gosto que partilhou a sua história comigo.
Nasceu em Angeja, Albergaria a Velha, onde teve “uma infância muito boa”, partilha com um sorriso tímido. Cresceu numa família de 6 irmãos, com quem jogava à “macaca” e ao “botão”. Já adulta, jogava à macaca com os netos e de “pés na terra”, que “a terra faz bem aos pés”, algo que a filha sempre aprovou bastante.
Estudou até à 4ª classe, o que possibilitou que aprendesse a ler. Hoje em dia, conversa muito, lê (gosta muito de ler) e dá os seus passeios para manter as pernas ativas. Uma outra utente emprestou-lhe um livro, “Misericórdia” da Lídia Jorge, e está a gostar muito de o ler. “O meu genro também gosta muito de comprar livros para ler nas férias”, conta-me, e pergunta-lhe que livro gostava de ler. Em casa tem muitos livros e quando lá for quer trazer alguns. Às vezes fogem-lhe as palavras e já não as consegue usar, mas “está tudo bem”, encara isso com naturalidade.
Viveu em casa dos pais até casar. Casou-se com 19 anos, em outubro, “ainda os meus pais tiveram de dar consentimento; naquele tempo era assim…” recorda sorridente. Naquele tempo a vida era um pouco difícil, antes de casarem, só se viam uma vez por ano em agosto. De resto namoravam por cartas. O seu marido, na altura ainda só um amigo, morava na rua dela e quando saíam da escola (que eram separadas, não mistas) ele encostava-se a ela e lá surgiu o primeiro namoro. Namoravam 20 dias pessoalmente por ano, era muito envergonhada mas foram felizes. No entanto, ele teve de ir para Lisboa, onde acabou por ficar noivo de outra rapariga, até que, quando voltou, decidiu que quem realmente queria a seu lado era Amélia, pediu-a em casamento, 61 anos de casados. Com um ar emocionado diz-me: “O meu marido era muito bom”.
Esteve em 42 anos a viver em S. Paulo no Brasil. No princípio chorava muito, depois habituou-se. O marido queria sempre a família junta, mas os filhos estavam por Portugal, o que fez com que acabassem por voltar para a zona de Albergaria. A vida de emigrante era uma vida complicada. Ainda voltaram ao Brasil para correr todos os estados de S.Paulo e passear.
Trabalhou sempre em casa, o marido não queria que trabalhasse. Ainda assim, teve a oportunidade de ajudar numa padaria, perto da qual viviam e onde o marido trabalhava. Em frente à padaria havia uma igreja, na hora de saída da missa havia muita gente e ela ia ajudar. “Sempre fui uma pessoa muito ativa e gostava de trabalhar.” , confessa, “Nunca gostei de mandar, gostei sempre de fazer”. Nos tempos livres, gostava muito de fazer crochet, “Fiz jogos de quarto, colchas de crochet para os meus filhos… Aprendi sozinha, pelas amostras. Uma vez vim para o Brasil e no aeroporto fiz uma colcha para a minha filha às tiras, fiz o resto lá em S.Paulo. Levei uma mala cheia de novelos!“ ri-se ao contar, imaginando como seria se lhe abrissem a mala no aeroporto.
Um dos seus momentos mais felizes foi quando nasceu o filho. Vivia nos anexos da casa de uma senhora italiana que a adotou como filha, acompanhou-a sempre e ajudou a fazer o enxoval para o menino. E depois, outro momento feliz foi, claro, com o nascimento da filha, aos 3 anos e meio do filho. Já o dia mais triste, afirma sem hesitar, foi há 8 anos quando o marido faleceu, vítima de doença, “Para mim acabou a vida”, confessa. Quando o marido tinha de se ausentar, sentia muito a falta dele. No entanto, tem fé de que ele está bem. O marido disse-lhe, certa vez, “oh mulher tu és uma pessoa que é mãe, mulher, enfermeira… onde eu estiver vou sempre cuidar de ti” e Amélia replica esta frase com um brilho nos olhos, acrescentando: “nós amamos o que é nosso e estimamos o que é nosso”.
Tem uma prótese há 24 anos na anca, uma velha amiga que a acompanha, mas não se lastima “foi assim, é assim que está, é assim que fica, pronto!”, diz que não vale a pena queixar-se das suas dores aos outros, quando é preciso vai ao médico e é isso. Caía várias vezes e isso levou a que tivesse de ir para o Solar, dado que vivia sozinha. Ao fim de semana está com os filhos.
Aventuras, também as houve! Risonha conta-me uma situação: quando pôs a prótese na perna, o marido disse ao sobrinho para ir buscar um balde de laranjas ao pomar, mas ele não foi. Então, Amélia decidiu trepar a laranjeira sozinha, sem ninguém saber, ainda não tinha ela recuperado da operação. O marido “ralhou” mas ela sentia-se tão bem! E não aconteceu nada! Não era pessoa para ficar parada, “tinha que arranjar sempre algo para me movimentar. Sentia-me com tanta coragem e vontade de fazer, que fazia!”. Diz que não adianta ter arrependimentos, já está feito paciência!
O bolo favorito é o bolo de arroz, é um bolo seco, que é como gosta. Gosta muito do campo, não é pessoa de praia. Ainda assim, tem um apartamento na Torreira e em julho, quando o marido era vivo, iam para lá. Tomou muitos banhos de mar na Torreira, o marido gostava muito, recorda. No entanto, frisa convicta, que o que ela gosta é de monte, de campo. Tinha galinhas, rolas e pombas (ainda tem na casa dela, aliás), o marido levantava-se de manhã para cuidar delas. Amélia gostava e até era capaz de ajudar na matança das galinhas para alimentação, mas depois deixou de ter coragem para isso, confidencia-me, pensativa.
Perguntei o que gostaria de deixar como mensagem final. Amélia deixa aos jovens o conselho que dá sempre aos seus netos: “ser humilde, saber estar… a educação é o melhor para qualquer pessoa”.
São estas vidas de anónimos que, mesmo não sendo produções de cinema cheias de explosões ou feitos incríveis, nos preenchem. São histórias e vidas das pessoas que nos rodeiam. Das ditas “pessoas comuns”. E afinal… as nossas vidas são preenchidas por quem? Por esses mesmos meros mortais. A minha preencheu-se e expandiu-se, multiplicou ramificações ao conversar com a Dona Amélia. Há que parar, sentar e ouvir. Sugiro que se sentem num banco de jardim e esperem. Quem sabe… talvez venham a ter uma boa conversa com um desconhecido. “Então e o que vai escrever? Eu não falei nada, falei mais de mim”, Amélia dizia-me rindo. Foi Amélia quem deu voz à minha escrita.
Henrique Pereira
Henrique Pereira é um homem que está a viver a sua sétima década. Traz consigo as histórias dos seus amores e das cicatrizes de Castelo de Paiva. Um dos eventos que ecoa sempre em suas lembranças foi o dia em que a ponte caiu, em 2001, um acontecimento que deixou marcas profundas na comunidade.
Henrique fez a sua vida em Santa Maria da Feira. No entanto, não me quis falar muito sobre si, sentia-se mais confortável quando falava da sua amada. Os seus olhos brilhavam com uma luz extra especial e o seu sorriso aumentava, como se ela ainda estivesse presente ao seu lado. Todo o amor e as lembranças da vida passada juntos estão bem vivas no seu coração. Ambos compartilhavam uma paixão pela dança e por jogos. Henrique é um homem namoradeiro, que dá muito valor ao toque físico. Durante a nossa conversa, tivemos tempo para um jogo, em que eu imitava os gestos que o senhor Henrique fazia. Mais uma coisa que lhe fazia relembrar a sua mulher.
O seu conselho para mim foi bastante simples, mas profundo: encontrar um parceiro que me trate com amor, carinho e muito respeito como ele sempre tratou o seu amor, o seu bebé. Ao longo dos 30 minutos que ficamos a falar, Henrique nunca deixou de sorrir e deu muitas gargalhadas, mostrando que, independentemente do que a vida nos traz, devemos sempre encarar tudo com positividade, amor e ter espaço no nosso coração para todos. E nas suas memórias e histórias, a essência do nosso Henrique permanecerá sempre viva, como um tributo ao poder do amor verdadeiro e duradouro.
Irene Cardoso
“A minha história de pequenina até agora é maior do que os romances”, disse Irene.
Deixo aqui alguns trechos deste longo romance. Mas devo dizer que ninguém faz jus a este romance senão a própria voz da D. Irene.
Irene descreve-se como uma sereia, é paraplégica e só mexe as mãos, os seus “ancinhos” como diz. A vida tem sido complicada, um daqueles romances um tanto ou quanto trágicos e que nos prendem a cada página.
A nossa sereia nasceu de parto normal em Ourentã e a infância também foi por lá. Em miúda, passava os dias em tropelias e brincadeiras a picar os bois. Tinha 6 anos e já andava a ajudar nos trabalhos com estes animais, ou a arrelia-los, vá… Irene sorri muito ao contar-me essas histórias de pequenina, não tinha medo, achava engraçada a interação e a adrenalina de fugir. Conta-me acerca de pequenas “asneiras” de criança e pequenas mentiras, e de como corria para fugir aos castigos. Toda a gente dizia que ela era “pior que o Eusébio” a correr para fugir. Escondia-se dos pais às vezes, sorrateira. Não fazia nada por mal.
Recorda um pequeno acidente que teve em miúda enquanto varejava azeitona e caiu de uma oliveira. Ficou a doer-lhe o rabo, confessa, mas não a levaram ao médico. Toda a gente lhe dizia que bastava a mãe fazer-lhe um chá, ou um dos seus caldos com ossos, para ela ficar boa. A sua mãe, Irene recordou saudosa, era uma pessoa simples e sempre a sua curandeira, com solução caseira para os males.
Teve um desgosto grande aos 16 anos, quando o pai morreu. Na altura ainda era travessa, diz ela. Gostava muito de andar nos bailes e dançar com os rapazes. Era namoradeira e “danada por dançar”, ri. Quem comprasse uma prenda tinha direito a escolher uma moça e dançar com ela, e havia um rapaz que queria sempre dançar com ela, sendo que o desejo era mútuo.
Mais tarde conheceu aquele que seria o seu marido. Era músico, tocava bateria, andava de terra em terra. “Fazia música de qualquer maneira!”, recorda Irene alegre. E diz-me tímida, que era mais velha mas “era tão lindo, tão lindo… com o cabelo encaracoladinho… parece que nunca tinha visto rapaz mais lindo na minha vida!”. O carinho que lhe tinha não passou despercebido na nossa conversa. O marido era muito seu amigo e cúmplice, fala com muita ternura de toda a alegria que lhe trazia e de dias bem passados na praia.
A nossa conversa desenrolou-se também para falarmos acerca da matança de porcos e salgadeiras, que alimentava a família durante um ano. Memórias vivas de tradições antigas e não tão longínquas assim.
Mas nem tudo no seu discurso é leve, são “vidas complicadas” desabafa. Tinha muitos animais, faziam criação de gado, era o trabalho. Estalou o pescoço e a espinha aos trinta e poucos anos, devido a um acidente ao subir um escadote. Nunca se deixou parar, ainda assim. Só a sua cabeça é que viaja, recordando sempre o passado. Sonha que trabalha, que anda a limpar o curral de bois… Faz por ser animada, apesar de também ter os seus dias maus. Mas não foi isso que me mostrou.
Aos jovens aconselha-os a viver sempre uma vida feliz, não ligar ao que os outros dizem, seguir sempre as suas ideias, da melhor maneira. No entanto, relembra o cuidado e prudência do seu marido em contraste com a sua espontaneidade e rebeldia, que por vezes, diz que a afetaram. Por isso deixa o conselho de se pensar um pouco mais antes de fazer as coisas. Hoje é mais prudente, mas ainda afirma dizer as suas “maluqueiras”.
Irene é a pequena Tom Sawyer portuguesa. De certeza que foi nela que Mark Twain se inspirou! Mas este, é outro romance. “Aproveitem o tempo enquanto têm tempo”, é a mensagem com que termina esta história.
Isolete Brandão
A Senhora Maria Isolete Gomes Brandão e a sua história são um exemplo de vida para todos nós, pois foi uma vida vivida com intensidade e propósito.
Isolete Brandão, descreve-se como uma mulher que tem a sua maneira de ser forte, arranja sempre soluções para os problemas, dá a volta por cima e aceita a sociedade como ela é. Nasceu em 1930, cresceu num ambiente cheio de crianças. Foi a primogénita de seis irmãos e a neta mais velha entre quinze netos, testemunhando desde cedo o poder do amor e da união familiar. Contou-me as suas memórias de uma infância muito feliz, onde brincou com as suas bonecas de papelão, saltou à corda e à macaca, embalada pelo riso e pela companhia de uma família numerosa.
Desde tenra idade, Isolete demonstrou curiosidade e sede de conhecimento. Ela aprendeu a ler com apenas cinco anos! Frequentou a escola até a quarta classe, mas a sua vontade de aprender mais, fez com que, aos 44 anos, decidisse continuar a sua educação, completando o sexto ano. E espantem-se porque ela não se ficou por aqui, aos 74 anos, alcançou mais um marco ao concluir o nono ano.
O seu casamento, aos 25 anos, trouxe-lhe vários dos momentos mais felizes da sua vida. O nascimento dos seus quatro filhos, apesar de dois deles infelizmente já falecidos, Isolete tem muito orgulho no que os seus filhos se tornaram e no que alcançaram na vida. Inclusive, a sua memória mais marcante foi quando o filho que sofria de esquizofrenia tirou um curso de inseminação artificial, este momento encheu-a de orgulho e esperança, da vida que o seu filho conseguiria alcançar qualquer coisa a que se propusesse, apesar da sua condição.
Não foi apenas sede por aprender que a nossa amiga Isolete demonstrou desde muito nova. O seu caminho de entrega e vontade de ajudar o próximo começou aos 10 anos, quando queria pedir dinheiro para dar aos pobres. Já na sua vida adulta, fundou uma associação na Rua Júlio Dinis, no Porto, onde dedicava o seu tempo a ajudar 18 pessoas com problemas de saúde mental. A melhor forma que arranjou para aprender mais acerca da doença do filho e como lhe dar o suporte que precisava, porque através da sua associação, Isolete ia a vários congressos acerca do tema, dados pelos irmãos São João de Deus, uma Ordem Hospitaleira de Fátima.
A senhora Isolete teve um AVC que é a principal razão pela qual foi para o lar. A sua família sente-se mais descansada sabendo que ela tem alguém a cuidar dela tão perto o dia todo. Com seus 93 anos de idade, Isolete reside no lar há cinco, onde pode focar-se nos seus hobbies e desfrutar dos momentos de lazer.
O seu cabelo grisalho, penteado e bem arranjado, já esvoaçou por vários sítios do país e do mundo. Isolete é do Porto, da Póvoa de Varzim, já viveu em em Santo Tirso, no Minho, e adora ir a Lisboa. No que diz respeito a sítios mais distantes viajou por Roma, Paris e pelos Açores. A sua parte preferida de todas as viagens era visitar as igrejas e os museus, ambos símbolos de história, uma área que sempre a fascinou bastante.
A senhora Isolete é uma mulher pequenina, mas com muita energia. Gosta muito de festas, de ter a família reunida, de rir, beber, falar, comer e dançar. Adora falar com as pessoas e ouvir as suas histórias, pois, pelas suas próprias palavras, é através das histórias que se conhece o povo. O seu prato preferido é peixe cozido com batata.
Quando lhe pedi um conselho disse-me que tenho de viver a minha vida com rigor e com carinho, de cabeça levantada independentemente do que a vida nos traz. Para aceitar o próximo como ele é, aceitar a sociedade senão ficamos tristes, amargos e rancorosos. Disse para me lembrar que a minha liberdade acaba quando a do outro começa.
A história da nossa Isolete emocionou-me bastante. Trouxe-me recordações da minha avózinha e revi-me na filosofia de vida da senhora Isolete. Relembrarei sempre a nossa conversa e a senhora Isolete Brandão, uma mulher determinada, que sempre seguiu o seu coração e deu o seu ao próximo. Uma mulher resiliente, que sempre procurou educar-se e que sempre viu a idade como um mero número e isso nunca a impediu de fazer nada. É um testemunho da força do espírito humano, da capacidade de superar adversidades e encontrar significado na caminhada da vida. Ela é uma luz brilhante em um mundo muitas vezes escuro, mostrando-nos que, mesmo nas dificuldades, há sempre espaço para o amor, a esperança e a compaixão.
José Maria de Sousa
Nascido em Vila Nova de Gaia em 21 de fevereiro de 1957, José Maria Silva de Sousa vive cada dia com a combinação certa de conformismo e superação, traços distintos que foram adquiridos ao longo de uma vida repleta de desafios e adaptações. O mais novo de quatro irmãos e uma irmã, viu no seu pai, Alcino, um modelo a seguir: um trabalhador incansável tanto nos campos agrícolas como na construção.
Aos 12 anos iniciou a sua trajetória profissional, como padeiro na Agripan, uma fábrica dedicada à panificação, em Vila Nova de Gaia. Trabalhava arduamente no fabrico do pão, todos os dias da meia-noite às sete da manhã. Infelizmente, a sua jornada no mundo do trabalho foi interrompida por episódios de alteração de humor devido à epilepsia. Sem medicação adequada na época, “Zé” Maria teve de se reformar por invalidez aos 28 anos, como consequência de episódios epiléticos recorrentes. Mais tarde, aos 30 anos, José decidiu perpetuar um pouco da sua identidade com duas tatuagens nos braços… Um gesto que revela individualidade e irreverência, características que ainda mantém até ao dia de hoje, orgulhosamente.
Destaca os prazeres simples da vida como as suas atividades favoritas durante a juventude e idade adulta: gosto por passeios, beber um café e ler o jornal. Álcool e paixões nunca o deixaram deslumbrado, o álcool interferia com a medicação e piorava os episódios de epilepsia, e os namoriscos nunca passaram disso mesmo. Nessa altura, era também adepto fervoroso do Benfica e de um clube local em Gaia, apreciava o fado da Amália e do Carlos do Carmo, os sons dos ranchos e as longas conversas que tinha com amigos.
No entanto, quando os seus pais faleceram, teve que se ajustar a uma nova realidade. Com a ajuda de um conhecido, encontrou um novo lar no Solar das Camélias em 2010. Foi neste ambiente acolhedor que finalmente alcançou o sossego e o acompanhamento médico que necessitava, de forma a pôr um fim aos seus ataques epiléticos. Aqui, a sua vida flui tranquilamente, algo que se reflete nas palavras de agradecimento que deixou ao staff do lar, pelo carinho e apoio prestados todos os dias da última década.
Como em qualquer outro aspeto da sua vida, Zé Maria nunca foi de extremos. Hoje, sentado na cadeira de rodas, confessa que desfruta de uma vida com moderação, sem muito prazer e sem muita dor. Passeios pelo pátio sim, desde que sejam curtos. Animais sim, desde que estejam longe. Conversas (como a que estávamos a ter) sim, desde que não passem dos 30 minutos (algo que tentei cumprir ao máximo).
No Solar das Camélias, José tem uma rotina pacífica, apreciando os dias que, nas suas próprias palavras, têm altos e baixos, especialmente no que diz respeito à comida! Sobre os seus companheiros no lar, ele é desinibido ao ponto de admitir que alguns o deixam agitado, sobretudo na hora das refeições. O barulho e a movimentação desorganizada de alguns utentes durante o dia deixam José Maria enervado. No entanto, compartilha o quarto com um utente silencioso, o que para ele, é a cereja no topo do bolo depois de um dia de azáfama.
Teve dificuldade em encontrar o adjetivo que melhor o descreve… Mas eu fi-lo por ele: honesto. Um homem de princípios sólidos, algo que ele atribui aos ensinamentos que os seus pais lhe transmitiram.
A história de José Maria Silva de Sousa relembra-nos de que apesar dos obstáculos que nos são apresentados, a vida pode sempre ser vivida com serenidade. Apesar da ocasional raiva direcionada aos seus colegas do lar, José vê a vida como ela é. Não como foi ou como deveria ter sido. Sem histerias ou desilusões, sem fanfarras e exageros. Só por aí, José Maria já alcançou um nível de paz espiritual que muitos de nós jamais iremos alcançar.
Maria Borda
Maria Borda Gonçalves dos Santos nasceu em Sobreiro (Albergaria à Velha) no dia 2 de setembro de 1950. Cresceu como filha única de pais agricultores. A sua vida teve uma reviravolta quando, aos 20 anos de idade, a família se mudou para Moçambique, em busca de um futuro melhor.
Em Moçambique, Maria e os pais desfrutaram de uma vida próspera. O seu pai operava como marceneiro, a sua mãe desempenhava funções de dona de casa, e Maria casou-se com António (nascido em Moçambique, filho de pais portugueses), que trabalhava no aeroporto local.
Infelizmente, em meados da década de 70, enfrentou a necessidade de deixar para trás a sua casa e grande parte das suas posses. Regressada a Portugal, recomeçou a sua vida em Sobreiro, ao lado do marido que arranjou emprego ao serviço da Escola Secundária de Albergaria-a-Velha. Poucos anos depois do regresso a casa, nasceu Carlos, o seu único filho. Em Sobreiro, Maria dedicava o seu tempo à família e à costura, que reflete como a sua atividade favorita na altura.
Viúva desde 2008, Maria acabou por se mudar para o Solar das Camélias em 2022. Confessa que gosta de estar no lar, que as funcionárias são simpáticas, as cadeiras confortáveis, e a comida… “A comida tem dias”. Nesse momento, ambos demos uma gargalhada. Tal como todos os cozinheiros sabem, o cardápio não pode sempre agradar a todos. Maria tem um problema de visão, o que a levou a desistir de algumas das suas atividades favoritas, como a costura e a pintura.
Quando a questionei sobre os momentos dos quais tem mais saudades, Maria escolheu as férias anuais passadas no Algarve com o marido e filho, quando este era jovem. Hoje em dia, Carlos vive na Suíça com a sua esposa e uma filha de um ano e meio. Não há maior motivo de alegria e orgulho para Maria do que esta menina “linda”, nas suas palavras. “Os nossos são sempre lindos, mas ela é mesmo linda”, reflete. Viu a menina ao vivo no Natal passado, mas o seu filho mostra-lhe fotografias sempre que a vem visitar, algo que faz com regularidade.
A decisão de se mudar para o Solar das Camélias foi motivada pela necessidade de segurança e assistência 24 horas por dia, mas Dona Maria acabou por reaver alegria nas atividades oferecidas pela instituição. Ao fim de semana, o ambiente fica mais monótono, sem a presença das animadoras. No entanto, é ao fim de semana que costuma receber visitas de primos e amigos, algo que a deixa sempre de bom humor. Lamenta apenas não saber utilizar o telemóvel, de forma a manter contacto com quem não a consegue visitar.
Maria descreve-se como uma mulher frágil, no que diz respeito à saúde física. Ao contrário da sua mãe, que faleceu apenas há cerca de 3 anos, e trabalhou ativamente na agricultura até uma idade avançada.
Relembrando com carinho os seus pais e a sua vida em Moçambique, Dona Maria é uma mulher de família que acompanha à distância os seus entes mais queridos. Contudo, no Solar das Camélias, sente que há sempre alguém disponível para a ajudar e fazer companhia, seja de dia ou de noite. Uma mulher de coração puro, Maria personifica a beleza da simplicidade entre palavras e sorrisos. Um exemplo de como a família e o amor podem sustentar-nos, independentemente das circunstâncias da vida.
Maria da Conceição Silva
Maria da Conceição diz que já está no Solar das Camélias há muito tempo, mas como o tempo é relativo, não precisou datas. Diz que gosta de lá estar, “É tudo boa gente!” afirma animada. 93 primaveras feitas, a 17 de maio, o mês mais bonito do ano, diz-me risonha.
Assim que perguntei acerca de onde cresceu a primeira coisa que lhe saltou à mente foi falar da mãe e da tia/madrinha. Cresceu em Felgueiras, terra do bolo rei, das cavacas e do pão de ló, feito só com gema de ovo, claro! As claras, essas, não se desperdiçaram, as pessoas iam buscá-las para fritar e comer. A mãe e a tia queriam que ela aprendesse o ofício de fazer estes doces, para os vender. E assim o foi, aos 10 anos, já ela sabia como fazer o pão de ló, com dúzias de ovos.
A sua professora, D. Júlia, recorda, considerava-a muito inteligente, conta-nos com um brilhozinho de orgulho nos olhos. Fez o exame da 3ª classe e a sua professora queria que Maria da Conceição viesse a ser professora também. Assim, quando se reformasse ficava ela no seu lugar. Mas ela não queria ser isso, antes queria pegar na sachola e ir para o campo.
E assim foi, não quis seguir estudos. Diz que as colegas a invejavam por a professora a admirar tanto e incentivar a sua inteligência. Essa atitude das colegas incomodava-a e pouca importância lhes dava.
Cuidou de crianças, enquanto ama, e gostava muito disso. Fez a comunhão solene e aprendeu a doutrina toda, que ensinou às colegas. Pode não ter sido formalmente professora, mas ao longo da vida, sem dúvida que ensinou muita coisa a muitos.
Casou-se mas nunca teve filhos. Continua a ver a missa todos os dias ao domingo, não falha nunca, diz! Nunca quis parar, reformou-se já tarde.
Com um sorriso maroto, quase pueril, confessa-nos que não gosta de carne, então deixa na beira do prato. O que lhe vale é a sopa, diz a rir. Se for massa e arroz também gosta, agora a carne…
Maria Ermelinda Nunes
A Dona Maria Ermelinda Cardoso Nunes, nascida em 7 de setembro de 1942, é natural do Porto, mais especificamente de Lordelo do Ouro. Completou a 4ª classe, jogava à macaca quando era pequena, tendo começado a trabalhar aos 8 anos de idade. É uma mulher de aço, já que trabalhou nas obras e em várias fábricas, onde fiava e torcia lã, seda, com recurso ao tear . Depois do 25 de abril e já reformada, ainda trabalhou muito nas terras a “fazer a lavoura”. Tinha também animais, alguns porcos e, maioritariamente vacas, chegou a ter 17, às quais, mecanicamente, tirava o leite e vendia. Curiosamente, não gosta nem nunca gostou de leite. Já de flores gosta muito, de plantas em geral e do trabalho que fazia nas terras.
Tinha 5 irmãos, casou-se aos 27 anos e teve 2 rapazes, mas infelizmente um faleceu novo, aos 24 anos, por andar nas “más companhias” e na droga. Também ficou viúva cedo, sendo que o marido bebia muito. Apesar do lado menos bom da vida, tem uma família, o primeiro filho, que lhe deu alguns netos e que decidiram apostar em carreiras promissoras sendo que tem um dos netos como finalista em medicina.
A D. Maria está no lar há cerca de 2 anos depois de ter tido um AVC. Apesar de ter recuperado muito bem, os números de telemóvel é que ficaram esquecidos. Os momentos mais felizes da sua vida foram o nascimento dos seus filhos.
Um conselho que deixa para as gerações futuras: “tenham juízo, a vida é curta”.
Maria Preciosa Dias
A D. Preciosa estava um pouco desconfiada, e sem saber ao certo o que estava aquele grupo de jovens ali a fazer. Depois de nos apresentarmos e explicarmos, lá a conversa se começou a desenrolar.
Preciosa é a memória viva de dias passados como vendedora nos mercados locais. Foi por entre pessoas e campo que cresceu. A sua infância, passou-a com a mãe, e irmãos, passando por Oliveira de Azeméis, Estarreja, Albergaria a Velha, a vender produtos no mercado. Os produtos, esses, eram semeados e colhidos pelas suas mãos e da sua família. Andava sempre de um lado para o outro, e gostava muito dessa dinâmica. Nem sempre havia tempo para brincar no meio de tudo isso. No entanto, ainda assim, havia dias em que brincavam e entretinham-se no campo por entre o trabalho, como qualquer outra criança.
Casou-se aos 17 anos, com um amigo da família. Sorri ao dizer que se davam muito bem e que… uma coisa foi levando à outra. Já depois de casada e com filhos, emigraram para França, à procura de melhores condições de vida. Lá, trabalhou no hotel, onde criou laços com uma patroa de quem gostava muito. Mais do que patroa, Preciosa encontrou uma amiga. Fala dela com um imenso carinho e recorda um bolo esta lhe ofereceu certa vez. Ficou-lhe na memória o gesto e nota-se no olhar de Preciosa que a leva a viajar no tempo.
Confessa que gosta muito de cozinhar, no entanto, a mão direita parece já não ajudar muito hoje em dia. A vida foi difícil, desabafa e fala-me triste de como tudo acaba, com uma saudade na voz que se entrelaça na minha garganta ao ouvir.
Aos jovens, aconselha-os a estudarem, se assim lhes for possível e se assim o desejarem. Recorda com orgulho o afinco do seu filho enquanto aluno e é isso que deseja ver nos jovens. Deixa também uma vontade e esperança de que as pessoas “honestas” possam ter uma vida mais fácil. São estas as palavras ricas de Preciosa que, apressada termina a nossa conversa, pois tem algo de importante para ir fazer. Não me contou o quê, é algo que faz parte do seu mundo… mas deixou-me a sua história para ser partilhada.
Maria Tavares da Silva
Maria Tavares da Silva, uma mulher, com os seus belos 89 anos, cujas belas rugas contam a história de uma vida repleta de simplicidade e amor. Ela mesma descreve sua própria existência como uma “vidinha”, mas por trás dessa modéstia, há uma vida de trabalho árduo e momentos de alegria que merecem ser celebrados.
Desde jovem, Maria dedicou-se ao cuidado do marido e da família, trabalhando nas suas várias hortas, nas quais plantava batata, couve, feijão e milho, para garantir comida na mesa. Tinha ainda animais domésticos, entre eles, coelhos, porcos e ovelhas. A sua generosidade ia além, compartilhando o que colhia com vizinhos, num exemplo vivo de solidariedade.
Apesar das dificuldades, Maria e seu marido alcançaram um conforto modesto com a aquisição de um "carrinho". Ela nunca aprendeu a conduzir, pois o medo sempre a impediu, mas isso não a impediu de enfrentar outros desafios da vida com coragem.
Nascida em Oliveira de Azeméis, Maria teve a sua educação interrompida cedo, estudando só até à quarta classe, mas guarda com carinho as duas lembranças da escola, era muito boa aluna, e lamenta não ter tido a oportunidade de estudar mais devido à rigidez do seu pai. A simples tarefa de escrever o seu próprio nome, que lhe propus, trazia-lhe uma mistura de nostalgia e orgulho, apesar da sua visão já enfraquecida.
A partida do irmão para o Brasil, quando este completou 16 anos, deixou uma lacuna na sua vida, perdendo o contato ao longo dos anos. Mas foi ao lado do marido que Maria construiu a sua felicidade, casando-se aos 18 anos e sempre partilharam um respeito mútuo, até que a morte repentina dele há duas décadas a deixou desamparada.
O nascimento do seu filho, Carlos Alberto, quando tinha 26 anos, foi uma bênção que encheu a sua vida de alegria, recorda-se como o momento mais feliz da sua vida. Hoje, ela é uma mãe e avó orgulhosa, ansiando pelas visitas do filho e pelas férias de verão para poder abraçar as suas netas, Leonor e Júlia, com 7 e 3 anos, que vivem distantes.
O seu cabelo grisalho, penteado e bem arranjado, com uma risca para o lado já esvoaçou pelos ares da Alemanha. Foi a primeira vez que andou de avião, após ter ficado viúva, e tem poucas, mas boas recordações dessa viagem. O edifício que mais gostou foi o banco Deutsche Bundesbank, o banco central da República Federal da Alemanha que faz pate do Sistema Europeu de Bancos Centris. Lembra-se de, na altura que lá foi, haviam muitos poucos carros na rua e gostou particularmente desse facto.
Vaidosa e simples ao mesmo tempo, Maria sempre bem apresentada, nunca dispensou de um relógio no pulso. Desde que se mudou para o lar das Camélias em junho de 2023, sente-se aprisionada numa rotina monótona, especialmente agora que luta contra cancro no estômago, que a impede de desfrutar dos prazeres simples da alimentação. Nos dias mais difíceis, sente-se perdida, que a sua vida está sem sentido e que apenas está a sobreviver neste mundo.
Quando pedi um conselho de vida, Maria, com sua sabedoria singela, alertou-me para ser cautelosa nas escolhas e desejou-me sorte. Uma mulher cética, que me dis para ter cuidade com a ilusão da vida. Realista, ela entende que a vida está aqui e agora, e devemos aproveitar cada momento ao lado daqueles que amamos.
A história de Maria é um relembrar poderoso de que a verdadeira riqueza reside na simplicidade, na generosidade e no amor compartilhado com os outros.
Natália Novo
Natália tem 87 anos, parte deles foram vividos em Angola, onde nasceu, tendo, mais tarde, vindo para Portugal. Ela nasceu no dia de Natal, em casa, e tem apenas um irmão mais velho, pois a sua irmã morreu de bronquite aos 6 anos, quando a Natália tinha 2 anos.
Admitiu ter um carinho especial por Portugal e particularmente pela cidade de Aveiro. Na altura, os meios de transporte não eram muito acessíveis e seguros, por isso as viagens de ida e volta não eram tão frequentes e acabava por ficar longas temporadas em casa dos tios, que viviam no Alboi, Aveiro. Ainda assim fez a primeira visita a Portugal com apenas 2 anos e terá regressado aos 8 anos, para frequentar a escola primária e comercial.
A sua mãe colocou-a num colégio de freiras em Angola até aos 18 anos, onde tinha pouca liberdade. Posteriormente, acabou por tirar o curso de formação feminina num colégio em Catumbela, que lhe permitiu dar aulas.
Recorda-se com nostalgia do passado, nomeadamente quando voltou a Portugal com as suas amigas, no período de férias do colégio, já com 18 anos. Curiosamente, foi nesta viagem que conheceu o seu namorado e futuro marido, afirmando ter sido “amor à primeira vista”.
Este amor cresceu ao longo dos anos, mesmo que à distância. Durante dois anos, ele foi para a tropa em Vendas Novas, mas escrevia-lhe todos os dias. No entanto, houve muitos enredos com o namorado de Natália, revelando-se muito mulherengo. Tanto que, numa viagem que ele fez com antigos colegas, arranjou outra namorada de Braga, da qual guardava uma foto na carteira, o que desencadeou mais tarde uma história de novela e um grande confronto na noite do casamento.
Por sua vez, também Natália era muito admirada pelos rapazes e recebia, inclusive, múltiplas cartas de amor, as quais negava consecutivamente por já estar comprometida. Após 2 anos de namoro, começaram a pensar em ir para Angola. Ele escreveu uma carta aos pais de Natália a pedir o consentimento para casarem, quando soube que ela ia voltar para a terra natal, ao qual eles acederam, pois também ele provinha de boas famílias.
A verdade é que quando esta namorada soube que ele ia casar, ela foi confrontá-lo e encontraram-se no Hotel Imperial, mas ele daqui saiu com a sua noiva, a Natália, que tinha uma boa família. Casaram em Aveiro, na igreja de Santo António. Por sua vez, a boda foi no Hotel Imperial, tendo sido celebrado no Hotel História em Coimbra e passados dois meses foram para Lisboa com o intuito de embarcar para Luanda.
Os tios de Natália prometeram arranjar trabalho para o marido, no entanto, foram surpreendidos à chegada com o contrário, tendo, por isso, ido para a terra natal, Catumbela, a pedido do seu pai, que arranjou logo trabalho ao genro como escriturário. Por sua vez, Natália permaneceu como dona de casa com os seus afazeres domésticos, enquanto dava aulas a crianças lá em casa, como uma forma de ocupar os seus tempos livres. Além disso, ela própria fez todo o seu enxoval, dando azos ao seu gosto por bordar, por isso usou o dinheiro mensal que recebia dos pais para comprar os tecidos. De seguida, aprendeu a usar a máquina, com a qual fez uma almofada bordada em cetim e ainda se arriscou na pintura à pena. Posteriormente, tirou uma formação, cuja ideia terá resultado de um livro de receitas que lá tinha em casa e começou a fazer bolos grandes e saborosos, para grandes eventos como casamentos e batizados.
Passaram confortavelmente 15 anos sem vir a Portugal e, entretanto, nasceu o seu filho que foi para Portugal, devido a um problema de saúde, tendo permanecido 2 meses no hospital em Lisboa. Durante este período, foram os avós que ficaram com ele, enquanto eles estavam em Angola, mas não tardou até o pai conseguir uma licença no trabalho, a qual recebia de 4 em 4 anos, para vir gozar a Portugal, durante 6 meses.
Recorda-se de muitas celebrações bonitas, tais como o Natal e a Páscoa que, segundo ela, se assemelham ao que é feito em Portugal. Após o casamento, o Natal variava entre Angola e Portugal. Em Angola, o padre ia cear em sua casa, por sua vez, em Portugal, era o seu tio que se juntava à celebração. Enquanto na Páscoa, a tradição passa por comer o cabrito e a visita do padre à sua casa. Por sua vez, no Carnaval havia a “batucada dos pretos” em Angola, já em Portugal costumava passar toda a noite com os seus amigos, todos mascarados claro.
Natália sempre foi muito caseira e de conforto, além de que era uma apreciadora nata da gastronomia diversificada que a encontrou, entre os seus pratos portugueses favoritos estão a chanfana e o cozido à portuguesa. Já da culinária africana destacou a muamba, prato feito com óleo de palma, galinha, etc. e depois servido com pirão ou funge.
Acabou por não viajar muito para outros países para além de Angola e Portugal, tendo visitado apenas o Algarve, a Madeira e, também Espanha, inclusive Tenerife. Apesar de não gostar muito de concertos e também não ir à praia, compensou nas idas ao cinema recorrentes da sua infância e nos bailes e matinés no clube dos galitos, pois gostava muito de dançar.
O seu momento mais feliz foi a Comunhão Solene na Sé de Aveiro, com 11 anos, para a qual levou o seu vestidinho branco, contando com a presença dos seus tios. Em seguida, destaca o casamento, para o qual a sua mãe veio propositadamente à celebração na igreja de Santo António. Além disso, inevitavelmente, recorda com ternura o nascimento do seu filho com 4kg e uma grande cabeleira, o parto foi feito em casa com o acompanhamento de uma parteira diplomata de Lisboa.
Recorda-se ainda do 25 de abril de 1974 em Aveiro, em que Natália habitava o chalé dos sogros com o seu marido e onde terá permanecido cerca de 6 anos. Este movimento cívico trazia uma mensagem de esperança para as pessoas de nível baixo e, por isso, todos se mostraram felizes, acompanhados de um cravo vermelho simbólico. No entanto, não representou grande impacto no quotidiano do casal, visto que nunca sentiram grandes restrições. Como memórias dolorosas dessa época, descreveu momentos de tortura aos comunistas e de uns amigos seus em África, quando presos acordavam-nos às 5h da manhã e metiam-nos por baixo dos pingos consecutivos do chuveiro.
Por sua vez, Natália e o seu marido não quiseram mudar logo porque estavam com receio de cortarem o vencimento do homem, mas lá decidiram ficar. O seu filho formou-se em Farmácia na Universidade de Coimbra, tal como a sua nora que era de Lisboa, mas vinha todos os fins de semana a casa visitar os pais. De momento vive em Aveiro com a sua mulher, pelo que desta relação terá resultado um filho e, portanto, neto da Senhora Natália.
Ainda antes do 25 de abril, já tinham em vista a construção de um prédio com 3 andares, mas tiveram de esperar 3 anos, devido à falta de material. Posteriormente, construiu então um prédio cor-de-rosa com o seu marido em Aradas, este tinha 6 apartamentos, a parte de cima continha um salão, terraço e bar. Eles viveram acompanhados de 6 gatos no 3º andar, de onde Natália caiu na consoada de Natal, tendo partido o calcanhar em 4 partes e ter sido descoberta uma infeção grave na bexiga. Por sua vez, sofreu tratamento tanto para a infeção, como para os diabetes, que já se encontram controlados. Para este tratamento decidiu permanecer num local calmo, onde pudesse passar os seus dias, pelo que escolheu o lar em Albergaria-a-velha, também porque é onde se encontra a sua tia, da qual tanto gosta.
O seu marido terá morrido há algum tempo e como planos para o futuro tem uma viagem planeada com o seu neto de 21 anos, que está atualmente a estudar engenharia no 4º ano (1º ano de mestrado) e do qual gosta muito. Posto isto, tencionam viajar juntos para matar as saudades, como ela costuma dizer: “vão dar uma passeata e depois logo se vê para onde se vai, mas algures pela cidade de Aveiro”.
Natividade Gemelgo
Foi na bonita cidade de Mogadouro, no distrito de Bragança, que nasceu uma mulher cujo nome peculiar ecoa como uma melodia suave: Natividade dos Anjos Gemelo. É uma mulher bonita, cabelo forte e arranjado, na qual destaco os seus brincos, o colar e o relógio, os quais não consegue dispensar no seu dia a dia.
Natividade nasceu numa época em que a vida era simples e os prazeres eram encontrados nas pequenas coisas. Cresceu ao lado de uma irmã e teve uma infância repleta de brincadeiras ao ar livre, onde os jogos do pião e do saltitão enchiam os dias de alegria. Tinha uma saudade no olhar quando falou que foi à escola e fez a terceira classe.
Aos 22 anos, Natividade começou um novo ciclo ao casar-se com o amor da sua vida e partir para Aveiro, onde construiu seu lar ao lado do marido em Esgueira. Ali, criaram seus dois preciosos filhos, Maria do Céu e António Melo. Os anos passaram-se, e os filhos cresceram, dando a Natividade a alegria de se tornar avó e bisavó, momentos que ela guardava com ternura em seu coração.
Ela lembrava ainda, com carinho a sua casinha pequena, onde viu seus filhos crescerem, e da casa grande que construiu mais tarde, cheia de memórias e amor. Mas, acima de tudo, ela valorizava os laços familiares e a simplicidade da vida. Natividade falou muito mais da sua família do que de si, inclusive, quando perguntei qual o momento mais marcante da sua vida, respondeu que foi o nascimento do seu primeiro neto.
A vida de Natividade foi marcada pelo trabalho e pela dedicação à sua família. Ela trabalhou como doméstica, na horta, tomava conta dos seus animais da quinta e mais tarde ainda trabalhou na empresa que ela e o seu marido construíram juntos. Apesar do incentivo do marido, Natividade nunca aprendeu a conduzir, contudo nunca deixou de ser uma força vital na empresa, apoiando seu marido, o chefe, em todas as tarefas.
Atualmente, com os seus 81 anos, Natividade está no lar há três, e neste encontrou conforto na companhia dos outros residentes e nas atividades oferecidas. Ela gosta especialmente de jogar dominó e às cartas, sendo o seu jogo preferido a bisca. Apesar da idade, Natividade tem muito boa memória e é uma senhora bastante inteligente, esta sabia que Mogadouro fica exatamente a 280km de Aveiro!
Ao longo da sua vida, Natividade viajou bastante para vários locais, mais perto ou mais longe, conhecendo novas maravilhas deste mundo. Foi até Espanha, como é claro. Riu-se quando lhe perguntei se sabia falar Espanhol, tem uma gargalhada muito contagiante. Viajou ainda até aos paraísos de Portugal, aos Açores, à Madeira e até foi ver a casa do Papa.
Para Natividade, a música do cantor Marco Paulo era como uma trilha sonora de sua vida, enquanto sua fé católica era uma fonte de conforto e esperança. Seu conselho para os outros é simples: trabalhar muito, ser feliz, arranjar um companheiro, respeitar e compreender aqueles que nos rodeiam.
A vida de Natividade dos Anjos Gemelo pode ser resumida como uma história de trabalho árduo, amor e gratidão. Ela encontrou alegria nas coisas simples, valorizou os momentos compartilhados com sua família e ensinou aos outros o verdadeiro significado da vida. A sua vida foi um testemunho de que, mesmo nos tempos mais difíceis, o amor e a compreensão podem nos guiar para a felicidade verdadeira.